Sunday, September 23, 2007

RENATO MAZZINI


mencionado por:

menciona a:
Ana Guadalupe
Bruna Beber
Alice Sant'anna
Sérgio Cohn
Marcos Siscar




Poemas

de repente quando o granizo

revoada invertida dos mesmos pássaros
que haviam seguido por ali antes
eu pude identificar gaivotas,
tinham a pena por couro, uma pele
espessa
e o granizo punha pedregulhos
como jóias cravejadas em seus
dorsos mínimos: havia,
de outro modo, uma
pelúcia glacial que podíamos ver
ou tocar mas jamais saber
a dor de ter sido incrustada ali

de repente quando o granizo,
silêncios tecidos
e uma outra ave convergiam,
desenhavam no ar, embaralhavam
as letras de nossos nomes

......................

buraco negro

as obsessões certas.
cartas de baralho e
de palavras. pessoas.
lã. lugares. geometria.
presunções equivocadas
tão orgânicas que até
perfeitas. o exame
radiográfico deste
tipo subsidiário de
solidão. coletivos de
nomes. as grandes
mandíbulas das cidades.
as alegações. as negações.
vícios e atrasos.
carne no freezer. vazio.
etiópia. luminárias.
o abandono dos cadernos
escolares. o sexo dos
cheiros. a doutrina
sacramental do absoluto
nada dizer. a soma
de termos aleatórios
pinçados de provérbios.
o viço dos cavalos. as
lâminas potencialmente
mortais dos ventiladores.
conversa tola. um quadro.
um abraço. um camelo.
uma pose de mártir. uma
sonda espacial. gravuras.
porcos. síntese. um
restaurante com estalactites.
museu. barcos. uma balsa
morta dos mortos para os
mortos. falar mal de vivos.
um pensamento. canela. ar.
golas. placas tectônicas.
a umidade assumida nas
bochechas e retinas.
o receptáculo para um
coração quente pulsante.
plástico. ovos. flanela para
a poeira dos abajures.
pássaros. a circunferência
irregular de um buraco negro
que engole cada minúcia
disso tudo e com arrojo
arrota.

....................

o anil adolescente deste céu
debaixo do qual respiramos
as nuvens para dentro de
nossos corpos

melodia fina e quase-quieta
de papéis sendo compressos
em envelopes retangulares
ao infinito

infusão nos copos de chá
bebidos às pressas de tarde
em dias demasiado curtos
para amar

novas e maravilhosas coisas
papel de parede para a vida
a escola nos transformando
em comunistas

.....................


Bio: Nasci em Março de 1981, em Santa Fé do Sul, interior escondido de SP. Leciono inglês há 7 anos, desde que parei de trabalhar com rádio, o que fiz durante outros 7 anos. Escrevo crítica musical desde 2004. Publiquei poemas em minguados ex-blogs no passado, e hoje mantenho um pequeno espaço (
http://renatomazzini.blogspot.com) onde veiculo o que tenho escrito nesses últimos anos, além de algumas traduções de poetas de língua inglesa de que gosto neste outro blog (http://poesiacomchopsticks.blogspot.com) com a ajuda da Ana e de possíveis colaboradores futuros. Manufaturei, no passado, alguns poezines, folhetins minúsculos de poemas, distribuídos entre muitos amigos e uns poucos estranhos interessados e atenciosos. Não existem mais. (Os escritos, claro; os amigos permanecem, e os estranhos ainda devem estar por aí).



Poética:
Vejo que, com a poesia, é possível percorrer dois caminhos principais distintos: 1) encher o mundo com pequenos fragmentos de autobiografia, não importa o quão inconscientemente disfarçada esteja, ou 2) observar e transmitir impressões externas através da lente mais singular possível, que é a sua própria. Ainda não sei qual dos dois atalhos tomo com meus poemas. Honestamente, espero que seja um misto de ambos, acoplado de muitas outras coisas que não sei bem o que são, mas que sempre se revelam bastante adequadas ou terrivelmente avessas ao centro da escrita.


................

Friday, September 21, 2007

VERA LÚCIA DE OLIVEIRA


mencionada por:
Donizete Galvão

menciona a:
LÊDO IVO
CARLOS NEJAR
IACYR ANDERSON FREITAS
CARLOS MACHADO
SÔNIA BARROS



Poemas

(do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, Brasília, 2006)
APRENDI O VENTO

aprendi o vento nas traves doendo
aprendi no escuro das traves
aprendi nas telhas
moendo seu sopro
aprendi como um bicho
aprende o uivo
de outro bicho
como a viga
o estalido
de outra viga



OS PÁSSAROS

os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto



SEMPRE

fui sempre
de percorrer na carne
o puído dos vãos
sempre de pôr o pé
na intimidade
das veias
sempre de lavrar
os dias mais
ferozes
para que doendo
amansem a morte


A LAMA

a lama de que brotou o osso
a lama de casa própria
pegadiça e lenta
a lama
de fundo de quintal
a lama de chuva fina
(ancoradouro
de enxurradas)

a lama por onde deflui
a essência do nosso sangue
a lama onde roça
o nosso pisado
a lama de que se molda
a substância
do cordão umbilical



PELO FOGO DA FALA

pelo fogo das palavras
pela sarça ardente das palavras
pisando por rugas de telhas
enquanto o coração crescia

pelo fogo da fala
pelo pavio secreto da língua
pela fagulha ardente
crescia meu coração
como crescem as folhas
que o vento arrasta no ardor da combustão



BIO-BIBLIO

Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota e cresceu em Assis em 1958, no Estado de São Paulo. Atualmente trabalha na Università degli Studi del Salento (Itália), onde ensina Literaturas Portuguesa e Brasileira. Formou-se em Letras pela Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), em 1981, e em Línguas e Literaturas Estrangeiras, em 1991, pela Università degli Studi di Perugia, na Itália. Neste mesmo país, obteve o doutorado, em 1997, pela Università degli Studi di Palermo.
É autora de trabalhos sobre poetas contemporâneos, publicados em revistas brasileiras e estrangeiras. Além da produção ensaísta, recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2005), pelo livro A chuva nos ruídos, o Prêmio Sandro Penna (Itália, 1988), por um conjunto de poemas inéditos, o Prêmio Nacional de Poesia de Senigallia (Itália, 2000), pelo livro La guarigione, o Prêmio “Popoli in cammino” (Itália, 2005) e o Premio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006), pelo livro Verrà l’anno, considerado entre as três melhores obras de poesia publicadas na Itália em 2006. A autora, que escreve tanto em português como em italiano, tem seus poemas traduzidos e publicados em várias antologias no Brasil, Itália, Portugal, Inglaterra e Espanha.
Traduziu e organizou as antologias poéticas de Lêdo Ivo, Illuminazioni, Multimedia, Salerno, 2002 (ISBN 88-86203-34-9), 128; Carlos Nejar, Miei cari vivi / Meus estimados vivos, Salerno, Multimedia, Salerno, 2004 (ISBN 88-86203-39-X), pp. 58; Nuno Júdice, Por dentro do fruto a chuva, Escrituras, São Paulo, 2004 (ISBN 85-7531-123-9), pp. 160.
Tem os seguintes livros publicados: A porta range no fim do corredor (poesia), Scortecci, São Paulo, 1983; Geografia d’ombra (poesia), Fonèma, Venezia, 1989; Pedaços / Pezzi (poesia), Etruria, Cortona, 1992; Tempo de doer / Tempo di soffrire (poesia), Pellicani Editore, Roma, 1998; Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio), Unesp e Edifurb, São Paulo, 2002; La guarigione (poesia), La Fenice, Senigallia, 2000; A chuva nos ruídos - Antologia Poética, Escrituras, São Paulo, 2004; Verrà l’anno (poesia), Fara Editore, Santarcangelo di Romagna, 2005; Storie nella storia: Le parabole di Guimarães Rosa (ensaio), Pensa Multimedia, Lecce, 2006; No coração da boca (poesia), Escrituras, São Paulo, 2006; Entre as junturas dos ossos (poesia), Ministério da Educação, Brasília, 2006.



Poética


DIÁSTOLE E SÍSTOLE, MOVIMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA POÉTICA
[1]

Vera Lúcia de Oliveira

“Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si. Para nossa grande tristeza, a memória é o único laço de ligação com os mortos. Portanto, a convicção de que a recordação seja um ato ético é profundamente radicada em nossa natureza de seres humanos (...). A insensibilidade e o esquecimento parecem caminhar juntos”.
Susan Sontag

Dizem que o século XX é, por antonomásia, o século do exílio, das grandes migrações de povos, dos movimentos gerados por guerras, genocídios, perseguições étnicas. Tudo isso produziu transformações e acentuou, conseqüentemente, pesquisas ligadas aos mecanismos de assimilação e/ou resistência cultural, monolingüismo e/ou coexistência de línguas diferentes em um mesmo indivíduo e em um mesmo território. Tais estudos interessam à sociologia, à antropologia cultural, à lingüística, à psicologia, à psicanálise. Também no âmbito da literatura, incrementou-se cada vez mais uma comunidade de escritores migrantes, que exprimem, em primeira pessoa, questões ligadas ao desenraizamento, à marginalização, à busca de um novo espaço físico e cultural, à solidão, à nostalgia. Tais escritores e intelectuais são, contudo, também testemunhas de que o diálogo entre povos é possível - não obstante as discrepâncias religiosas, lingüísticas, culturais -, são testemunhas de que o encontro e a convivência levam a um enriquecimento humano. Eles são, com suas peculiaridades, agentes e promotores de paz, porque estão na confluência entre mundos; são pontes que unem fronteiras e margens heterogêneas.
A própria tradução e a autotradução, para estes autores migrantes, tornou-se um instrumento fundamental não só de conhecimento da alteridade e de autoconhecimento, mas de aproximação e intercâmbio, já que a globalização não pode ser entendida como a hegemonia de uma língua sobre as outras, de uma nação sobre a outra. Conhecer-se e conhecer o outro é evitar incompreensões, conflitos e guerras. Conhecer a dor de quem parte e retorna, ou não retorna, é tornar-se mais tolerante, mais aberto às dinâmicas psicológicas envolvidas na experiência da migração e da conseqüente necessidade de tradução. É justamente com o intuito de refletir sobre estas questões que tentarei reelaborar aqui, brevemente, a minha experiência de escritora “migrante”, nascida e crescida no Brasil, que vive e trabalha há diversos anos na Itália e que convive, na poesia, com o fenômeno do bilingüismo.
Cresci numa cidade do interior de São Paulo, no fértil Vale do Paranapanema, uma das regiões mais ricas do estado, mas também uma região onde as contradições sociais são evidentes. Belas cidades, com seus bairros nobres no centro, circundados por outros habitados por gente muito pobre, trabalhadores rurais expulsos do campo pelas condições insuportáveis de vida, que, de tardinha, voltavam nos caminhões de bóias-frias, com suas enxadas nos ombros, o cansaço nos olhos, a terra vermelha, como sangue, grudada no corpo, na roupa, marca indelével que nem todo sabão do mundo conseguiria lavar. Eu morava em uma vila de periferia, zona intermediária entre a cidade rica e a cidade pobre, e cresci em contato direto com tais problemas. Via ao meu redor gente que lutava obstinadamente para sobreviver, homens e mulheres que, com trinta anos, já eram velhos. Menina ainda, eu acreditava que o mundo inteiro fosse dividido em bairros ricos e bairros pobres, e imaginava que, se continuasse a andar do centro para a periferia, encontraria sempre mais miséria e degradação, até o infinito.
E queria entender o porquê disso tudo, em um momento complicado, de repressão e de censura política, muitas vezes interiorizadas pelas pessoas. Fazia perguntas aos meus pais e aos professores, sem receber respostas satisfatórias. Comecei assim a escrever: escrever ajudava a decifrar a realidade, a analisá-la. E eu queria falar sobre aquele mundo, contar histórias que conhecia, falar sobre as pessoas que me pareciam fortes e corajosas, não obstante a indigência em que viviam. Comecei escrevendo breves contos, às vezes escrevia e basta: perguntas e respostas que eu mesma achava, para tentar entender. A poesia, ao contrário, deu-me a possibilidade de exprimir-me com a máxima concentração e a máxima incisividade. E queria incidir sobre a minha realidade, embora mais tarde tenha descoberto que a poesia tem possibilidades mínimas de influir sobre o mundo.
O grande escritor italiano Primo Levi escreveu:

“Para o sobrevivente, narrar é atividade importante e complexa. É percebida ao mesmo tempo como obrigação moral e civil, como uma necessidade primária, liberatória, e como uma promoção social: quem viveu o lager se sente depositário de uma experiência fundamental, inserido na história do mundo, testemunha por direito e por dever, frustrado se o seu depoimento não é solicitado e acolhido, remunerado se o é.”
[2]

Não obstante o fato de que Levi se refira aqui à sua terrível experiência do lager, não comparável certamente à minha, há algo nestas palavras que senti como parte de mim mesma: a sensação do reduce, ou seja do sobrevivente, e a de dever de testemunhar tal experiência. Tive muitas vezes a impressão de ter sobrevivido à minha infância e adolescência. Pela vontade de saber porque o mundo era como era, porque precisava entender como se pode viver indiferente à angústia de quem sofre e morre ao nosso lado, e como um homem – que é capaz de tanto amor - acabe muitas vezes por torturar o próximo, por odiar e por destruir, por motivos fúteis.
Escrever, por isto, fazer poesia, não foi uma opção. Não sei fazer outra coisa com a mesma intensidade, não sei construir casas, não sou capaz de dar assistência aos enfermos, não tenho o poder de interromper a destruição das florestas, não consigo impedir que um homem mate outro homem, que um povo destrua outro povo. Sei escrever, e não como desejaria, não sei escrever palavras que possam mudar alguma coisa, que possam cancelar algum sofrimento.
Apesar dessa impotência da palavra, sempre concebi a poesia como algo de concreto, palavras densas, que têm muito mais a ver com as artes plásticas, com a escultura, do que com a música. O meu desejo seria o de abrir um livro um dia e ver caírem dele com força coisas, pedras, pedaços de objetos, tesouras, brinquedos, bicicletas quebradas, árvores, até mesmo cães, gatos, e sobretudo pessoas (não sei como), todas as pessoas que conheci, que não pude segurar junto a mim. Todo um mundo lá dentro, apertadinho nas páginas, que nos chama, que nos convida a acariciar feridas físicas ou espirituais, a reconstituir vidas e histórias.
A minha poesia é uma reflexão sobre os temas da dor, da morte, da incomunicabilidade, da fragmentação do ser e da nossa realidade. Nunca conseguir atribuir um sentido ao sofrimento. E no entanto a vida brota da dor, gera-se da laceração de um corpo de mulher. E cada coisa que se aprende, cada processo de crescimento e de maturação comporta sofrimento, incertezas, anseios. Também a morte é um grande mistério, mas a morte é o outro lado da vida, tudo é provisório no universo, tudo parece caminhar para o desgaste e a transformação da consciência em nada inerte, pelo menos da consciência individual. A morte física tem, pois, uma lógica nessa precariedade cósmica da matéria, embora seja, em absoluto, a experiência mais dolorosa que possamos ter. A dor, no entanto, e penso como Dostoievski, não tem uma explicação, nem do ponto de vista da filosofia nem da religião: é uma ferida aberta na consciência.
Uma amiga me perguntou uma vez, lendo meus poemas, porque parecia não chegar o momento de cantar a alegria em meus versos, que sondam em demasia a noite, que atravessam desarmados o sofrimento, querendo olhar por dentro do que não pode ser visto de olhos abertos. Respondi que não escolhi este tipo de poesia, deu-se o exato contrário. Não penso que tive menos sorte do que tantas outras pessoas, que vivi mais traumas, que senti mais dores ou que chorei mais do que outros, mas, desde criança, olhava ao redor, sentia e assimilava inquietações e angústias que percebia. Era desassossegada, virava em volta das coisas e queria vê-las por todos os lados, queria virá-las do avesso e vê-las por dentro.
Esse é um elemento importante da minha escritura e quase todos os meus livros são marcados por esta indagação existencial, embora alguns estudiosos tenham ligado este traço mais à uma vaga busca de universalidade e menos às minhas experiências concretas de vida no Brasil, em um momento tão difícil da nossa história, como foi o período da ditadura. E aqui introduzo um outro aspecto marcante, gerador de conflitos muitas vezes insanáveis no texto: é o fato, no meu caso, de existirem dois tipos de espaços geográficos, o Brasil (país em que nasci e cresci) e a Itália (país no qual vivo há vários anos). Esta dicotomia transparece continuamente nos poemas. Hoje escrevo nas duas línguas e os meus últimos livros são quase todos bilíngües, português/italiano. Tal dualidade é um sinal tangível do conflito gerado por essa convivência com duas culturas, muitas vezes díspares e contraditórias, bem como do meu esforço para harmonizá-las na escritura.
Afirma o estudioso Antonio Prete, a propósito do autores migrantes e bilíngües:

“a escritura é com freqüência o teatro de um conflito entre a língua materna e uma língua de adoção e de comunicação: as invenções da forma, e os modos da representação, passam por este conflito e por este confronto. As hibridações, as ofensas “inventivas” à ordem da língua adquirida, as recuperações de línguas da infância, ou de fragmentos das mesmas, o jogo pluri-lingüístico, são fenômenos que testemunham uma necessidade: preservar, no íntimo da língua, a dor de uma memória, de uma origem, mas, ao mesmo tempo, fazer da língua o novo país, em que a representação encontra o leitor, entra em diálogo com ele”
[3].

Essa dicotomia produz poesia, mas dá origem também a uma série de reflexões concretas, muito presentes e sentidas. Como continuar fiel a mim mesma, por exemplo, à minha língua, à realidade na qual me formei, e ao mesmo tempo fazer poesia em outro contexto e para um outro interlocutor? As imagens que carrego dentro, algumas das experiências mais intensas e incanceláveis são, muitas vezes, ligadas à infância e à adolescência, passadas no Brasil, imagens e experiências que as pessoas, com quem vivo hoje, na maioria dos casos, não partilham. São, além disso, experiências interiorizadas e interpretadas na língua portuguesa. Por mais que eu queira atenuar, há aqui uma ruptura entre dois tempos e dois espaços que é muito difícil de sanar.
Este problema, eu o vivi depois do segundo/terceiro ano de permanência na Itália. Continuei a escrever e a elaborar meus textos em português, mas isto era um trabalho muito solitário, porque utilizava na escritura uma língua, enquanto quotidianamente usava uma outra. Veio-me o impulso, assim, de traduzir alguns dos poemas, inicialmente para mostrá-los a amigos e partilhar tais experiências. Depois, sem que me desse conta, comecei a escrever diretamente em italiano: breves textos poéticos sobre paisagens da Úmbria (a bela região em que vivo, no centro da Itália), imagens de bosques, campos, montanhas, a mudança das estações que eu percebia de forma muito mais viva do que no Brasil. As pessoas, inicialmente, não entravam nestes versos, porque não confiava totalmente na minha capacidade de ler e interpretar gestos e expressões, já que, na empatia, as diferenças culturais podem pesar muito no início e gerar insegurança, senso de precariedade, desconfiança (o estrangeiro provoca, na verdade, inquietação e, tantas vezes, temor, porque não o conhecemos e não somos capazes de compreendê-lo plenamente. E até que não façamos um esforço para ir além das aparências, o outro continuará para nós um universo oculto e inacessível).
Sendo a língua do meu quotidiano, foi inevitável, pois, o uso do italiano como idioma de poesia, ao lado do português, mas, no começo, confesso que foi um choque. Vivi o fenômeno da dupla escritura, do bilingüismo literário, com angústia, pois tinha medo de perder o relacionamento privilegiado e profundo com a minha língua materna, o português brasileiro. Depois, aos poucos, acostumei-me a esta dualidade lingüística e a própria tradução me serviu, muitas vezes, para retornar aos textos originais e revê-los. A tradução, neste processo, é possibilidade de diálogo e é também transmutação e reinvenção do texto. Se toda obra literária tem uma vocação para a viagem, para a partida, ela carrega no seu bojo a terra de origem, o seu solo, a sua identidade. A tradução une dois elementos, o si mesmo e o outro, a partida e o retorno. Torna-se o caminho entre diástole e sístole, entre dicotomia e síntese.
O temor inicial, de dispersar-me entre os dois registros, os dois espaços e tempos da minha vivência e escritura, resolveu-se, assim, na tentativa de harmonizar e de sintetizar, através da poesia, as experiências diversas vividas nos dois países, já que cada uma delas tem a sua riqueza e a sua especificidade. Para isto, a poesia é propícia, pois é linguagem de harmonia, de integridade do ser: é esforço de unificação, é fadiga para permanecer íntegros. Nos livros publicados nos últimos anos, há uma tentativa de compor e conciliar segmentos de realidades diferentes, porque para lá dos fracionamentos econômicos, geográficos, das diferenças culturais, os homens são sempre os mesmos, com todo o bem e o mal de que são capazes, com todo a alegria e o sofrimento, na vida e na morte de cada um e de todos.
Naturalmente, existem diferenças marcantes entre as duas línguas e cada uma tem seu âmbito e sua peculiaridade. O português é um idioma muito rico para a expressão de toda uma gama complexa de sentimentos. O italiano, língua também bela e poética, não permite - como o português - esta mesma maleabilidade, porque os italianos, para certas coisas, para exprimir certos conceitos ou sentimentos, utilizam o dialeto. É o fenômeno da diglossia. Os brasileiros já usam a mesma língua para as mais variadas situações, só mudando o registro. Isto está ligado, é claro, à história dos dois países. A Itália sempre teve o problema da sobreposição, da convivência difícil entre língua e dialetos, onde o italiano funciona como língua oficial e o dialeto como língua informal do dia-a-dia, falada em família, entre amigos. Neste sentido, é natural que o italiano seja mais elegante, mais áulico e, muitas vezes, também mais literário.
Já o português, sobretudo o português brasileiro, tem uma acentuada propensão à afetividade. O poeta Raul Boop notou, não sem espanto, que até os verbos são usados no diminutivo. Este caráter afetivo da língua portuguesa foi notado já nos seus primórdios. No século XV, isso foi sublinhado por D. Duarte, no livro Leal Conselheiro. Este rei culto e melancólico tinha percebido a maleabilidade do português para exprimir certos estados complexos de alma, certos sentimentos, como a saudade, que dizem não ter tradução em outras línguas (ele foi o primeiro a defini-la).
No uso de dois idiomas tão peculiares, cada um com sua rica tradição literária, ocorre muitas vezes hibridação, não no sentido de que um interfira no outro, provocando confusão ou troca de termos (embora não se possa evitar em absoluto interposições, mesmo inconscientes, de um sistema sobre o outro), mas no cruzamento de tradições, ritmos intrínsecos, metros peculiares de cada idioma, em que um assimila algo do outro no próprio fazer-se do texto. É nesta ótica que, de fato, nasceu o primeiro livro, da série que a grande crítica e amiga, Luciana Stegagno Picchio, definiu "bilíngüe": Geografie d'ombra (Fonèma Edizioni, Venezia), publicado em 1989, seguido de Pedaços/Pezzi (Editora L'Etruria, Arezzo), de 1992, de Tempo de Doer/Tempo di Soffrire (Pellicani Editore, Roma), publicado em 1998, de La guarigione (Edizioni La Fenice, Senigallia), publicado em 2000, de Uccelli convusi (Mani Editore, Lecce), publicado em 2001, de No coração da boca / Nel cuore della parola (Adriatica, Bari), de 2003 e de Verrà l’anno (Fara, Santarcangelo di Romagna, 2005).
Em Geografie d’ombra, de 1989, estão as primeiros textos em italiano, ao lado de outros em português, acompanhados da tradução de minha autoria. Este não é o meu primeiro livro publicado, o qual saiu em São Paulo no mesmo ano em que me fixei na Itália, em 1983: A porta range no fim do corredor. Entre eles não há uma grande ruptura, em termos de temas e mesmo de formas, a não ser o da utilização de um novo sistema lingüístico, que já começa a assomar.
Depois de Geografie d’ombra, publiquei Pedaços/Pezzi, em 1992, cujo título é indicativo de uma adaptação à nova realidade ainda in fieri. Há nele vários textos em que abordo a questão do exílio e da nostalgia, com um senso de incompletude, com um sentimento quase físico de dilaceração. É um livro amargo e desesperançado, e hoje não o publicaria mais, pelo menos não com a mesma estrutura. Os poemas foram todos escritos em português e há resistência em relação à versão em italiano, uma vez que preferi não publicar as traduções de toda a terceira parte do volume, não obstante o fato de que estivessem prontas.
O terceiro livro, Tempo de doer/Tempo di soffrire, publicado em 1998, apesar da temática, ou talvez mesmo por ela, é muito mais equilibrado. Há, nele, uma maior unidade de sentido e de forma. O primeiro núcleo foi escrito em português, mas depois passei de um idioma ao outro, sem perceber essa alternância de línguas como ruptura, como perda de significado, mas utilizando todos os recursos que ambas me propiciavam. Não é um texto simples, mas é um livro de síntese e de harmonia, como não o tinham sido os outros precedentes. Neste, como nos livros anteriores, a temática existencial do sofrimento está muito presente. Aqui, em particular modo, desço nos meandros de uma terrível prática de violência, utilizada nas prisões do Brasil durante a ditadura e ainda hoje em tantos lugares do mundo, a tortura física e psicológica. Posso dizer mesmo que este trauma, vivido indiretamente, marcou-me profundamente.
A este entranhar-se numa temática tão visceral, segue-se La guarigione, publicado em 2000. Foi escrito inteiramente em italiano, embora nele adote o verso setenário, típico da tradição poética da língua portuguesa. Anterior a La guarigione, é o livro Pássaros convulsos, publicado em 2001. Ambos foram vencedores de prêmios nacionais de poesia na Itália, assim como o livro Verrà l’anno, escrito em italiano, em 2003, e recentemente publicado.
O último, No coração da boca / Nel cuore della bocca, publicado no fim de 2003, foi, ao contrário, escrito em português. É composto por uma série de breves poemas em prosa, em que se alternam tantos personagens. Retomo aqui figuras da minha infância e adolescência, vozes que me acompanhavam desde sempre, conservadas na memória.
Como estes livros foram publicados na Itália e tiveram limitada circulação no Brasil, a Editora Escrituras publicou em São Paulo, em 2004, uma antologia que segue esse percurso, A chuva nos ruídos, vencedora ex aequo do prêmio de poesia da Academia de Letras de 2005. O título representa, para mim, uma definição de poesia: chuva vivificante, geradora do logos, palavra criadora sobre os ruídos indistintos e o burburinho cacofônico da incomunicação.
O meu livro mais recente não tem ainda um nome. Começou a ser escrito, em português, a partir de um poema que estava tentando reajustar, sem consegui-lo. Narrava uma experiência marcante vivida na infância e não era a primeira vez que voltava ao texto, sem ficar satisfeita com o resultado. De repente, percebi que a forma não era justa, que aquele conteúdo incandescente não cabia no contenitore que estava usando. Reescrevi o texto, espraiando-o pela página, com uma estrutura que se aproximava da narrativa, mas que era ainda poesia. Era a forma certa, a linguagem que propiciou que uma série de histórias, que estavam dentro de mim, finalmente virassem elóquio, palavra. Encontrara o modo de concretizá-las, e vi que elas só esperavam por isso: num desespero de palavras, de vozes que queriam ser ouvidas, cheguei à página setenta. Estes textos seguem, como estilo, a ruptura que efetuei no livro No coração da boca, mas aqui estão ainda mais narrativos. Colocam-se, come estrutura, entre o conto breve (de menos de uma página) e o poema lírico, com sua síntese e densidade.
Gostaria de concluir, com uma questão que me foi muitas vezes posta: é possível definir-se poeta hoje, assumir tal papel? Por que, e para que, escrever? Por que passar tanto tempo a refletir, a perscrutar dentro de si, a indagar a realidade, a estudar, elaborar e limar um texto? Vai-se depois aos editores com o livro nas mãos, e a resposta que recebemos, no mais das vezes, é que poesia não vende, poesia não dá lucro, poesia não tem público, as pessoas não têm mais tempo para ler. E há sempre alguém que, amigavelmente, nos aconselha a escolher outro tipo de literatura, a propor, quem sabe, um romance ou algo mais divertido. Vem-me em mente uma frase do crítico italiano Walter Pedullà, segundo o qual a linguagem da comicidade é hoje apanágio do entretenimento, é televisiva, não mais metafísica.
Afirma Raymond Carver que toda poesia é um ato de amor e de fé. E acrescenta ainda:

“Esta do poeta é uma atividade que rende tão pouco, tanto financeiramente quanto em termos de fama e de sucesso, que o ato de escrever uma poesia dever ser um ato que encontra a própria justificação em si mesmo e não mira a nenhuma outra finalidade. Para querer realizá-lo, é necessário amar este ato. Neste sentido, então, toda poesia é uma poesia de amor”
[4].

O artista, o poeta, é já em si um exilado, não porque foge da realidade ou vive fora dela, mas porque vê sempre o mundo com olhos de estranhamento, de quem não aceita as coisas simplesmente como estão, de quem se choca contra a banalização do mundo, o comércio da vida. O poeta é um ser desenraizado, banido da realidade utilitária, da economia de mercado, do trabalho mecânico que escraviza, dos relacionamentos que desrespeitam o homem. E como não poderia ser assim? Hoje, mais do que nunca, como afirma Carver, se escreve poesia por amor. Por amor à vida se escreve, como por amor se canta, se pinta, se fala da morte e da dor. Fazer poesia é procurar sobreviver com toda a nossa sensibilidade, a nossa fragilidade. É realizar uma viagem vertical. Não é uma escolha fácil, sobretudo em um tempo em que tudo trama para alienar-nos de nós mesmos, para distanciar-nos do sentido profundo do mundo.

[1] Texto publicado na Revista de Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, 2006.[2] Primo Levi, Opere, volume primo, Einaudi, Torino, 1987, p. XLVI (as traduções presentes no texto são de minha autoria).[3] Antonio Prete, “Trasmigrazione e singolarità”, in Unile 2, Lecce, n°. 2, ano 1, 06/2003, pp. 24-25 (24).[4] Raymond Carter, Niente trucchi da quattro soldi, Roma, Minimum Fax, 2002, p.13.



Monday, September 10, 2007

RICARDO PIRES DE SOUZA


mencionado por:
Mariana Ianelli

menciona a:
Beatriz Helena Ramos Amaral
Sérgio Alcides
Patrícia Burrowes
Fernando Alves



poemas


A Ilha de São Brandão

iv

Os negros amontoados nos porões destes navios
Universais se perguntam: Quem somos nós?
O que somos nós? De dentro de suas percepções
Ecoa um abismo aquático para fora daquelas paredes
De madeira negra. Quem sou senão madeira enegrecida
Revestiva por algas verde-azuladas por fora e urina
De escravos negros por dentro? Alma-pássaro
Que não tem existência a não ser em mim mesmo,
Mônada espiritual que vai e que volta
Numa compreensão pequena, quase nenhuma.

Nenhuma compreensão dos navios de Rugendas
Existe na morte, pois a morte não existe, oferta
De desconhecimento, vertiginoso rumor de lamentos
De homens-propriedade, exilados da compaixão
E da tolerância perpétuas.

Dessa raça melanésia há de nascer a Ausência,
A ausência do tempo, do espaço, da manifestação.
Enquanto os filhos dos filisteus fazem contas,
Os deserdados de si chegam ao fim de suas carências,
Cálices cheios de minutos impuros que atravessam
Os oceanos geradores das Dores de Deus.

Padre Fray Francisco Ximenez, da Ordem de Santo
Domingo, dai-me leite, dai-me um caudal de índios
E negros miseráveis e inesquecíveis em sua independência
Perdida, em suas lendas e deuses quase perdidos.
Dai-me a transcrição dessa história de desvalidos,
Dessa linhagem de almas pagãs, salvas pela bondade
E pela felicidade dos Conquistadores e dos Reis dos Mares.

Repouso sobre o convés daquele vaso de relações
Inumanas, tranqüilo, pois sou o avô do dia, joalheiro
De pingentes de homens presos a correntes de lástimas.
Sentado sobre a amurada observo acima as estrelas
Humildes brilharem, pedras preciosas, por sobre os ébanos
De esplendor guardados no porão, metais preciosos
Recostados, ombro a ombro, nas alegorias do sono
E da morte.

Me seguro na viga-mestra para não deixar cair ao mar
Estes versos que nem Camões ou Castro Alves aprovariam,
Segmentações de um texto muito mais extraordinário
Chamado “Navio Negreiro”. Os mensageiros de Deus
Com suas cruzes de malta ornaram-se de fados e flechas,
De carícias de açoites e da chave-mestra que abre
Todos os cadeados, inclusive o da alma.

A brisa agita a cápsula em que eu, o Homem da Lua,
Me mumifico, esperando, obediente e órfão, as vibrações
Dos albatrozes dizendo: cheguei! Sou autopercepção,
Autogeração, filho de negros escravos, mal maior
Aos triplos, aos quádruplos, começando nas savanas
Imaculadas e terminando nos areais do Brasil.


Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.





São Paulo pela Manhã

viii

Os edifícios cinzentos se implantam nas ruas
De um lado e de outro, detonando a paisagem.
Se ao menos as pessoas comuns pudessem ver,
Como eu vejo, a alma dessas construções, talvez
Eu me sentisse um pouco menos sozinho. Para elas
São apenas prédios, tijolos, concreto, vidro, portas,
Janelas, onde elas mesmas habitam, trabalham,
Se amam, e, eventualmente, de onde se atiram,
Pondo um fim em suas vidas insones. Mas qual
Fim? Posso continuar a vê-las transitando vaidosas
Dentro e fora desses lugares todos, como espectros
Indestrutíveis. Na verdade, vejo os resíduos despidos
Que vivos e mortos costumam deixar quando passam,
Suas pobres emoções derramadas, seus pensamentos
Abruptos e a energia vital dos seus corpos. Todos
Esses alentos de vivos e mortos, juntos, compõem
A alma dos edifícios com os quais convivo.

As ruas, igualmente, têm também almas,
Mais voláteis e oscilantes, porém, ainda assim
É possível lidar com elas, as almas das ruas.
Saltam dos bueiros e das bocas-de-lobo emanações
Imprecisas que me recontam histórias remotas.
Não sei dizer se se referem a fatos reais ou são
Simples imaginações dessas sombras exóticas
Que subsistem nos subterrâneos das cidades
Que habito. Imagino quantos extratos de vivências
Sepultadas se sobrepõem nos quase quinhentos
Anos da cidade de São Paulo ou nos mais
De mil anos de Vladimir e Suzdal.

Presto muita atenção neste movimento sempiterno
Que – onde os homens e mulheres se juntam – acumula
Saliências sobre saliências de ânsias caladas e as enterra,
Construindo sobre elas novas casas de paixões nebulosas,
Que os tolos arqueólogos pobremente chamam de Tróia I,
Tróia II, Tróia III, Tróia IV, Hastinapura..., Rio de Janeiro...,
Knossos..., Nippur..., Nínive I, II, III, e assim por diante.
Todas essas cidades colecionam os ardores seminais
Dos seus filhos, vivos ou mortos, ou apenas indecisos,
E os incorporam à sua própria personalidade, às paredes
De suas construções, ao asfalto de suas avenidas,
Ao semblante dos seus monumentos. Em Florença,
David observa os assíduos idosos alimentarem
Os pombos que, embora ninguém perceba, são
Os mesmos há centenas de anos. Em Atenas algum
Livre-pensador ainda lê o pseudo-aristocrático Homero
E reluz, deixando resíduos de protomatéria espalhados
Ao redor de si mesmo, alimento de seres superetéreos
Que não podem ler, mas podem sentir e sofrer. De Meca
E Medina emana uma plenitude de santidade que limpa
As almas, mesmo as que nunca puderam nem poderão
Entrar lá. Nas Américas, em todas as aglomerações
Emprestadas, os mártires da colonização ainda se erguem,
Vivos ou mortos, para contar aos seus filhos mestiços
Sobre como o que é bom e o que é mau se transformam
E se confundem, partículas de princípios e argumentos
Que constantemente se reorganizam em éticas novas.

As almas de cada cidade, de cada rua, de cada minarete,
De cada casa, murmuram melodias de impiedade
E paixão, desmoronamento e esperança, e desejam
Avidamente – eu sinto – os meus e os seus resíduos de vida
Para ajudar a compor as fundações da Alma do Mundo.


Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.




Memórias

iii

Semanas atrás desenterrei meus mortos,
Com suas máscaras de malaquita, ágata, lápis-lázuli,
Rosas destacadas de suas faces pequenas a me fitar
Aliviadas. Reinventei uma ampulheta que lhes medisse
Uma forma de tempo diverso, no qual as despedidas
Fossem filhas do Nascente – líricas e consoladoras –
E o Poente despejasse multidões de borboletas
E um tiê-sangue assustado com as celebrações da Terra.
Em troca, meus mortos me falaram do Desconhecido.
Meu pai lançou sua língua de cimento e luto
E me contou sobre um lugar onde sempre é outono
E sempre meio-dia. Meio-dia ininterrupto e cinza
Que mantém sulfúrea a ferida e no qual não há vinho
Para a garganta. Manola subiu gargalhando pela torre
Da catedral e esvaiu-se, inspirando profundamente
Três vezes e desaprendendo a ser gente. Minha avó
Gotejou uma desdita trêmula e triste e foi logo
Arrumar o jantar. Meu avô me abraçou uma única
Vez, num amplexo que já dura desde sempre.

Reencontro meus mortos em suas posturas inertes,
Hugo, Cortázar, Cellini, Mário, Wilde, Dalí, Pound,
Dvörak, Einstein, Neruda, Whitman, Plotino, de Leon,
Bandeira, Goethe, Tolstói, El Bosco, Rosa, Mistral,
Eliot, Picasso, Nijinsky, Steiner, Confúcio, Spinoza,
Darwin, van Gogh, Kant, Leibnitz, Campbell,
Hipócrates, Cèzanne, Maquiavelli, Foucault, Durant,
Mishima, Cecília, Arcimboldo, Lennon, Hamsum, Poe,
Hesse, Pagannini, Avicena, Cunha, Michelangelo,
Stevens, Reich e tantos outros que não identifico,
Na bruma da minha desolação. Seus suspiros,
Através de meus sentidos, entram, como jardineiros
Ingênuos plantando lantanas nas cercanias dos cárceres.
Suas pegadas levam a esconderijos para além
Das transitoriedades, onde o umbigo da vida prende
Os seus cordões a um único elo, engenhoso modo
De mantê-los intactos, desagüando num braço
De mar de minha morada. Todos caminham
Comigo todo o tempo. Me habituo a eles, à saudade
Que me empurra para crateras em mim, abertas
Pela emoção. Cultuo suas geometrias. Meus mortos
Não me julgam, crêem que sou seu herdeiro
Dileto, fugitivo, como eles, da noção da verdade.

Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.





bio/biblio:

Ricardo Pires de Souza, 45 anos, pai do João Ricardo e do Lucas, médico radiologista, doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo, analista junguiano, autor de “Anima Mundi”, pela Ateliê Editorial. “A Dança de Shiva” está em processo de publicação, também pela Ateliê. Embora goste da minha profissão, se pudesse (acho que como a maioria dos poetas), viveria somente para escrever.




poética:

Mas somente o poema pode perguntar: que sou eu?

Posso repetir inúmeras vezes esta mesma pergunta
E chamar isso poema.


O Peregrino, Anima Mundi, Ricardo Pires de Souza, Ateliê Editorial, 2004.