Monday, July 30, 2007


MARCELO MONTENEGRO


mencionado por:
Ronaldo Bressane
Chacal
Joca Reiners Terron


menciona a:
Sergio Mello
Luana Vignon
Bruna Beber
Maurício Arruda Mendonça
Augusto Silva



poemas


buquê de presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.


robert creeley band

Monga, a mulher-gorila:
na dúvida, rindo da Vida;
aqui, grudada no corpo,
como uma calça jeans
encharcada de chuva –
A preparação do salto
na cabeça do cervo morto.

A musa fatiada na véspera
do mágico – E o jeito encantador
com que a executiva
mexe o canudo
no copo de suco.

Na quermesse dos sentidos,
onde a noite troca de pele
com o dia – O céu esfolado,
anjos em velocípedes –
A esfirra que sobra
na lanchonete que fecha –
Onde o espanto
lustra seus rifles.


matinê

Às vezes saio do cinema
E me ponho a andar
Cartografias pessoas
Apenas olhar
Ter a leve impressão
De que a cidade está grávida
De um outro lugar


bio/biblio

Marcelo Montenegro (São Caetano do Sul, SP, 1971) é autor de Orfanato Portátil (Atrito Art Editorial, 2003). É editor de vídeo e membro do grupo de teatro Cemitério de Automóveis onde opera luz e sonoplastia.




poética

geometria folk


Brasa de cigarro espetando a escuridão
Um vídeo cassete com rodelas meladas de copo por cima
Retirando os excessos de um texto
como quem tira a importância das coisas
Uma flor num pote de margarina
O eterno despido de um uivo?
O poeta está sempre verde
Inseto que se arrebenta na miragem de vidro
A cara de quem acorda sem saber aonde




RONALDO BRESSANE


mencionado por:
Sergio Cohn
Joca Reiners Terron

menciona a:
Vão os amigos que não encontrei aqui:
Bruna Beber
Marcelo Montenegro
Paulo Scott
Ricardo Miyake
Xico Sá




3 poemas

Estratégia de branding

Demarca território neste couro
com os dentes escreve nome e sobrenome
vermelho roxo e verde pro teu logo

Com as unhas anota instruções pra este uso
o que é teu embala com saliva suor e seiva
nesta página escande ou rasura a tua serifa

Demarca território neste couro
só não repõe no mercado este produto
– antes ruminado em fogo de marfim
que reciclado em brechó ou camelô

Se der na telha, rasga, frita e come
: só não o devolve nunca sem teu nome


Ontem em Buenos Aires

Felizes frente ao cemitério
Pedimos a última Quilmes
Está linda nessa digital, digo
Ao lado da tumba de Evita
Nem se percebe quem é quem
Você se levanta rebolando
O sol reboa nas cruzes por sobre os muros
E o garçom sem gorjeta chia
Um beijo atrás da placa art decô do metrô
Mas você some no subterrâneo
Te amarei como nunca, agora
Que já é ficção


Nevermind Neverland

Faz sol chove venta garoa
e nuvens voam velozes
como nas telas de Turner
sinto fome sono saudade
gente grita em mongrego
hebrárabe aimarusso e até inglês
viro estátua em Kensington
Peter Pan ergue braços pretos
me sopra mind your mind
esquilos me pedem rango
gringos exilados pedem rango
o guitarrista do tube pede rango
e uma banana custa um dólar
no meu país compraria dúzias
uma nova tropicália em Hoxton
os risos dos amigos apagam
as 52 cruzes de King’s Cross
sete do sete uma santidade ímpia
severa como os parques londrinos
há virgens com véus nos cabelos
e putas com véus nos olhos
todas com bundas tristes
hoje almoço uma Guinness
gente grita em tupinésio
francoviet falsofarsi nipohispano
teutocoreo italoruba portinglês
não estou aqui e ainda estou
como em um sonho de outro
em todo canto há placas
informando aonde não ir
em todo canto há câmeras
informando que sou ator
no filme de um ser anônimo
Londres é um parque temático em si
e no tube avós espiam minha mochila
please dont’ you be very long
please don’t belong
me pede George no iPod
o exílio não é pra quem pode
e é proibido fumar nos pubs
os dias passam velozes
fome sono saudade libras somem
minha barba cresce atroz
os pés viram cascos de cavalo
viro planta no Hyde Park
viro bomba no Eros de Piccadilly
viro aramaia afrisânscrito mandatim
viro o Thames a cor dos teus olhos
I wish I was at the Big Bang
nevermind the gap diz Peter Pan

Bio/biblio
Nasci em 1970 em São Paulo. Jornalista, editor e corinthiano, escrevi a trilogia de contos A outra comédia, formada por Os infernos possíveis [Com-Arte/USP, 1999], 10 presídios de bolso [Altana, 2001] e Céu de Lúcifer [Azougue, 2003], além do volume de poemas O Impostor [Ciência do Acidente, 2002]. Esses poemas aí anotei entre 2004 e 2007; fazem parte do livro Lua vermelha e podem virar papel a qualquer momento. Hoje trabalho como redator-chefe da Trip [http://www.trip.com.br], mantenho o blog Impostor [http://impostor.wordpress.com] e tento ensinar o canhotinho Lorenzo a bater na bola com a perna direita [cabecear com a testa e de olhos abertos ele já aprendeu].


Poética


meu filho perguntando como existem coisas que existem mas não existem
o medo do goleiro diante do pênalti e o tesão do atacante diante do gol
tantas mulheres voando que não vejo a lua as estrelas o espaço sideral

Friday, July 27, 2007


RODRIGO PETRONIO


mencionado por: Dirceu Villa

menciona a:
(Cito quem ainda não está:)
Maiara Gouveia
Claudio Willer
Floriano Martins
Foed Castro Chamma
Flávia Rocha



poemas


MEDITAÇÃO À MARGEM DO RIO AMARELO

Queimei a pólvora dos meus dias lendo as entrelinhas do capital.
Decidi que o mundo foi feito para acabar em um livro.
Esterilizei a terra e alterei o curso dos rios.
Ergui palácios de papel sobre estruturas e vigas de vidro.
Escureci a noite e tirei os dentes do riso.
Apaguei a memória dos mortos e matei o viço dos vivos.
Carcomi o azul do céu e ceifei as raízes do trigo.
Hoje o meu império vacila e rebenta como um corpo balofo cheio de estrias.
As crianças estão velhas e rugas brotam do amaranto.
Tudo o que toco parece ter dois mil anos.
Talvez seja isso o início do que chamam sabedoria.





A TERRA NÃO ACABA PORQUE A ALMA AFUNDA

A terra não acaba porque a alma afunda.
Recolhe-se ao suspiro das pedras que ordenham a noite.
Vê: a geometria só existe porque o movimento a articula.
A ciência dos mortos dentro de um arbusto
É a mesma do nascimento de flores prematuras.
Os olhos só vêem a verdade que flutua.
O resto é ilusão: falso amor que só preserva o que anula.
O cais deixando o barco, o vôo entre os braços das árvores
Que eclodem em uma lâmpada.
Um deus qualquer que vê além da morte o que a morte não captura.
Sim, amor, a alma só persiste porque a terra se extingue.
Prenhe de leveza antes da chuva, eclipse do corpo em atributos,
Assinatura do dia que se enrola (perfeito)
Na retidão sutil de cada curva que a mão refaz na nuvem
E modela dois diamantes em uma só torção de busto.
Entre a eternidade e o vinco que a unha faz no fruto
Em um beijo revivemos, tu e eu, todo o futuro.


MANHÃ NEGRA, AÇÚCAR, BEBO O ORVALHO DE UM ROSTO

Este açúcar negro que despejo em uma manhã de agosto
É o suor de uma face sulcada pela selva.
Diluo lentamente a sua carne no café que exala
O sangue macio, a menstruação de luz, a primavera,
A pele perfumada, o hálito da boca em brasa,
Sua resina que se granula sob a pálpebra da lua,
No seu fundo se deposita e ainda se conserva.
A arquitetura porosa dos ossos se traduz em um só gosto.
As fibras da língua e a saliva se preparam para a flor
Ceifada do todo e, despicienda, retida entre as mãos, em seu aborto.
Imolo a sua doçura no pavilhão da xícara, e ele,
Prestes a mergulhar em mim e em uma só carícia cega
Povoar-me os sonhos e rechear-me o interior de cada célula.
Dissolvo-o vagarosamente nos giros da moenda.
O aroma se desprende e enche toda a sala:
Mão diáfana com sua linha feita a faca,
Costas estriadas em arabesco como um cesto de vime.
Pausado, levo a emulsão aos lábios e desfruto
A repetição de mais um ritual civilizado
Como quem em plena luz comete um crime.

DENTRO DA ESTRELA BRANCA

I

O prazer de ser esquecido.
Beber a eternidade com lábios de limbo.
Tocar cada coisa. Pela primeira vez.
Como quem se vê partindo.
Duvidar da morte. Como quem a visse.
Beijar teu rosto. Como se eu não existisse.

II

Bendita seja esta sede.
Esta pétala negra que me coroa.
O espinho de luz desperta a carne.
Na corrente das águas talha minha cara.
Abençoa.

O espírito se rende à navalha.
O monumento de sangue.
O corpo que escoa.
Na outra margem do tempo
Meu coração bate.
Seu pulso se sente.
Mas seu som não soa.

A terra se abre.
Sou-a.

III

Sei das frutas porque os braços me deram.
Sei do fruto que se desfaz no dente.
A primavera recrudesce na papoula.
O orvalho destas mãos: luva transparente.
Retenho teu choro. Teu peito contra mim.
Amo apenas o que passa rente.
Perdendo o prumo retorna ao grão.
A morte que desfaz o que não mente.
Exilado da terra. Céu de ervas.
Deponho minha máscara. Abandono a cena.
Fora do teatro um deus me espera.


IV

Estas mãos têm algo de trágico.
Embora só tenham tocado teu rosto.
Indago da eternidade.
O milagre que banha de luz esse morto.
Nada me responde. Só pegadas.
Palavras que emergem de um cesto.
Feixe de artérias. Voz de outro.
A minha garganta recebe o sol.
Sua luz. A nudez do ouro.
Todo o resto é arte e adorno.

V

O que colho pode vir de uma água mais antiga.
Mais remota que as pedras. Mais mineral que o dia.
Mais tenaz que o céu que sob a terra palpita.
Mais leve que o planeta de argila batida.
O que colho colho com mãos trôpegas.
Indigentes. Sempre as mesmas espigas.
Colho o que não se cultiva.
O instante fugaz. A amora fresca. A cidra.
Colho no ar. Neste campo ilimitado.
Céu sem nuvens. Mar sem praia.
O que ao perder o prumo doura o espaço.
Toda a forma que sob o céu levita.
Estrela ou sargaço.

VI

As duas fases de um mesmo ventre: tempo.
As duas moedas de um mesmo rosto: corpo.

VII

As urzes podem rebentar de minha mão.
Não chorarei. Porque a manhã retém a noite.
E todas as outras formas luminosas.
O lírio desposa o besouro que o renega.
Todo o martírio do mundo vem da entrega.
As rezes se espalham na campina branca.
Pascem seu dorso natural. E seguem.
Só se sofre pelo amor que recusamos.
Nada fica pela metade.
Morrer é lembrar que não amamos.

VIII

Um risco dourado. Um filete de água.
Uma escama verde. A grama de maio.
A constelação que me cinge com seu saibro.
O relâmpago que me entrega sua coroa.
Sou pobre. Nada tenho além da alma.
Esta mão cinza. Este coração de barro.
Esta pele de luz que em vão apalpo.
Oferenda ao sol. A quem me mato.


IX

Se digo que sonho o ruído das flores minto.
Perco-me num labirinto de imagens.
Estou além do que penso e aquém do que sinto.
Todas as asas de um mesmo jogo.
Todos os rostos de um só cenário.
Plumas selvagens que adornam o louco.
Se digo que sorvo este veio. Este abismo.
As flores me tragam em seus orifícios.
Estrelas são patas. Estrias claras da brisa.
O resto são armas. A guerra e o atrito.
A degustação suave da aurora.
E a beleza na qual me aniquilo.

X

O que sobra de tudo talvez seja o início.
Um destino talvez. Um rastro. Uma rota.
Pegadas que levam a um precipício.
Asas que fabrico a cada derrota.

XI

Longe. A amora não me ofereceu sua face.
Apenas o barro com que moldo o milagre.
Se o amor é esse declínio sem fim.
Essa oração à terra que me abre
Toda a engrenagem de suas partes.
Procedo dela. A ele retorno.
Na afirmação do amor me dissolvo.
Além do tato. Além das vozes.
Amor que só se cumpre com minha morte.

XII

Outrora fui esse campo de sono.
Em outro lugar já vivi esse aqui e agora.
Outro era o tempo do mundo em minha garganta.
Canto que dissolve o cantor em suas notas.
Imola-o nas teclas brandas da chuva.
Sorve seu corpo gota a gota em sua obra.
Outro veneno aplaca minha sede.


XIII

Nada mato. Nada retenho. Nada procrio.
Sou o parto azul dos elementos.
A circulação da linfa desses dias.
Depois o poema vem cumprir sua rota.
Colide com o planeta. Abre uma ilha.
Por ora só me encontro em quanto ardo.
Exilado do corpo onde ainda queimo.
Refém da alma de quem fui amado.
Andarilho de um mundo que não adentro.
Flor que ainda persiste em meio a cacos.
Ruído vegetal: eis minhas armas.
Morrer ignorado: maior de todos monumentos.
Estrela que no céu não deixa rastro.
Deus só nasce quando perde o centro.


bio/biblio

Rodrigo Petronio é escritor, professor e pesquisador. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema (AIC), do Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e do Instituto Fernand Braudel. Colabora para diversos veículos da imprensa. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem poemas, contos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de encontros de escritores em instituições brasileiras e em Portugal. É autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal, e organizou com a poeta Rosa Alice Branco o livro Animal Olhar (Escrituras, 2005), primeira antologia do poeta português António Ramos Rosa publicada no Brasil. Publicou o livro de poemas Pedra de Luz, pela editora A Girafa, que foi finalista do Prêmio Jabuti 2006.



poética

A poesia é o grau mais terrível da inocência.

Meditação à Margem do Rio Amarelo
A Terra não Acaba Porque a Alma Afunda
Manhã Negra, Açúcar, Bebo o Orvalho de um Rosto

Rodrigo Petronio. Pedra de Luz. São Paulo: A Girafa, 2005.

Dentro da Estrela Branca.

Rodrigo Petronio. Venho de um País Selvagem. Inédito.



Wednesday, July 25, 2007

VALÉRIO OLIVEIRA





mencionado por:Dirceu Villa

menciona a:
Luiz Roberto Guedes
Sergio Fantini
Renato Rezende
Denis Dias Ferreira
Paulo Scott



poemas

de “Todos os presidentes” (inédito)



Avenida Deodoro da Fonseca


Magnetismo irresistível:
o corpo (o meu corpo, o teu corpo)
sempre atrai muitas bocas.

Estendo a mão e quase sou mordido.
Quase fico sem os dedos, sem a aliança, sem a mão.
Faça o que fizer, não importa, eles mordem.
Diga o que disser,
não importa, eles mordem.

Se você reclama, eles mordem.
Se você sorri, eles mordem.
Se você acelera, eles mordem.
Não importa se o sinal está aberto ou fechado,
ele mordem de qualquer jeito.

Cigarros? Beijos? Moedas?
Não importa se você é egoísta ou generoso,
eles mordem.

Se você é negro, arrancam tua pele.
Se é branco, chupam teus olhos.
Se é amarelo, vermelho, azul,
bebem todo o teu sangue.
As carcaças estão aí, as ossadas
estão todas aí ao longo da avenida.

Não importam as boas intenções,
as más intenções.
Eles sempre mordem.
Eles mordem porque têm boca.

Porque, você sabe,
não adianta ficar ou fugir,
sorrir ou chorar.
Eles mordem de qualquer jeito.
É da sua natureza morder.

Têm boca. Têm bico.

Toda criatura que tem boca
(grande ou pequena, não importa),
toda criatura que tem boca, você sabe.
Venha do céu ou do inferno,
toda criatura que tem dentes
sadios ou podres
morde.

Toda criatura que tem bico
(grande ou pequeno, não importa),
toda criatura que tem bico, é, você sabe.

Magnetismo irresistível: ao longo da avenida,
no trabalho, em casa,
o corpo (o meu corpo, o teu corpo)
sempre atrai muitas bocas.
Muitos bicos.

Periquitos, operários, gatos,
banqueiros, jacarés, presidentes.

É da sua natureza morder.




Praça Floriano Peixoto


Quem escreve poesia corre muitos riscos.
O pior deles é o de ser lido.
As pessoas que lêem poesia são perigosas.

Porém mais perigosas do que as pessoas que lêem poesia
são as pessoas que não lêem poesia
mas conhecem quem lê.
Essas são as que ocupam os cargos públicos
e gostam de homenagear os poetas.
Porque para elas os poetas também são figuras públicas.
Porque para elas a poesia
é a mais cultural das atividades culturais.

Ora, o que se faz às figuras públicas, especialmente
às que se entregam a atividades culturais?
Homenagens!
Mesmo que seja por cima do cadáver do homenageado.

As pessoas que ocupam os cargos públicos
e não lêem poesia adoram
batizar as ruas com o nome dos poetas.
As ruas, as avenidas, as praças, os viadutos.
Também adoram erguer estátuas e monumentos.
Elas adoram homenagear a cultura.
Elas adoram homenagear a poesia.
Como não há outra maneira de homenagear a poesia
a não ser através dos poetas,
elas adoram homenagear os poetas.

Homenagear os poetas é de certa forma a melhor maneira
que as pessoas que não lêem poesia encontram
de homenagear a si mesmas.

Qualquer dia desses talvez elas comecem a ler os poemas.
Tudo é possível neste mundo.
Talvez elas comecem a ler os poemas
e finalmente deixem de homenagear a si mesmas
como prêmio por sua dedicação à cultura.
Isso não acontece todo dia. Mas não é impossível.

Quem escreve poesia corre muitos riscos.
Entre eles o de ser homenageado em cerimônias oficiais.

Os poetas não querem ser conhecidos,
não querem apertar muitas mãos nem ouvir longos discursos.
Não querem virar rua ou praça.
Não querem viver pra sempre num parque,
em permanente estado de estátua.
Os poetas não querem viver pra sempre,
após a morte eles querem ser incinerados.
Acima de tudo os poetas querem que a sua poesia seja conhecida.

Antes e depois da sua morte, antes e depois de virarem cinza
os poetas realmente querem que a sua poesia seja conhecida.
Isso não acontece todo dia, eu sei.
Mas nada é impossível neste mundo.





Agência Prudente de Morais


Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo
a velha crença em milagres.

Nas mãos do segurança do banco
eu deixei as chaves, a bolsa, o coração e os ossos,
deixei tudo o que levava nos bolsos e no corpo
porque o alarme não parava de soar.

Nas mãos do segurança eu deixei
os brincos e os anéis, o pâncreas e os pulmões,
deixei tudo o que eu tinha e até o que nem sabia que tinha:
o câncer no útero, o medo de lugares abertos,
a vontade de aprender a dançar.

O alarme não parava de soar, simplesmente
não parava, a porta-giratória travou
e eu não tive coragem de olhar pra trás,
pra fila aflita que me vigiava.

Deixei tudo, os sapatos, a roupa,
as unhas, o estômago e todas as lembranças.
Nas mãos do segurança do banco
eu deixei as viagens que planejava fazer,
os namorados, os filhos que ainda não tive.

A porta giratória travou entre a vida de lá e a de cá
e eu tive muito medo de ficar presa
nesse intervalo econômico.
Então eu entreguei tudo, até mesmo o outono,
o sorriso e os meus melhores aniversários.

Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo
os dezesseis mil beijos que você me deu,
os ardentes e os protocolares.

Sem mais nada para incomodar o alarme,
eu decidi ir embora.
Fui até o carro e vi que não tinha mais carro.
Voltei para casa e vi que não tinha mais casa.
Eu não tinha mais nada, eu não tinha nome, eu não tinha eu.

A verdadeira força, a sublime missão
dos alarmes, dos seguranças e dos bancos é essa:
libertar a humanidade dos pesos e das medidas indóceis.

Faltam dois dias para o ano-novo,
a cidade continua viva
e eu sei, ah, mesmo sem as antigas crenças
eu sei que no vaivém das portas giratórias
enquanto houver finanças e seguranças
fenômenos mais espantosos estão para acontecer.




Valério Oliveira nasceu no Rio de Janeiro, em 1958. Poeta e vagabundo globalizado, já morou em Los Angeles, Buenos Aires, Madri, Milão, Lisboa e no Porto. Gosta de felinos, de Modigliani e de Itamar Assumpção. Atualmente mora em São Paulo e ganha a vida como garçom num restaurante de comida italiana. Tem quatro livros publicados, todos de maneira artesanal: Mínimo eu (2002), Oh! (2003), Sobras do subsolo (2004) e Teto no piso (2005).










poética:
Poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de
despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético. Essa definição de poesia me permite buscar a referida qualidade em todas as artes. Me permite falar da poesia que há nos bons poemas, nos bons contos, na boa arquitetura, no bom cinema, no bom teatro, na boa escultura…
FABRÍCIO CARPINEJAR



Foto: Eduardo Nasi (RS)


mencionado por:
Jorge Lucio de Campos
Mariana Ianelli
Pedro Maciel

Leandro Sarmatz

menciona a:
Ricardo Aleixo
Wilmar Silva
Leandro Sarmatz
Paulo Scott
Leonardo Fróes
Geraldo Carneiro



POEMAS

O que procuras no tapete
verde que não tenha sido limpo?
Estirado como uma flecha, uma cruz,

dormes sem conforto, um peixe
dentro da baleia do corredor,
a espirrar espuma, a respirar

para todos os lados da carne.
O que pretendes me dizer?
Cuidado, filho, o chão alucina.

Meu filho, fala alto,
meu ouvido está no fim,
já não escuto a minha infância,

já não sei pensar com os símbolos,
as metáforas e os sinais.
Alguns amadurecem, a maioria cansa.





Do livro "Meu Filho, Minha Filha" (Bertrand Brasil, 2007)










Mal leio os jornais de manhã.
Fui me desinformando por completo,
eliminando a noção das enchentes, das calamidades,
dos crimes, o que me alojava no mundo.


Não tenho nada para conversar
que não seja escrito.


Prefiro comer em silêncio, como se estivesse pescando.


Ergo os joelhos na cama para acordar e volto a dormir.
O quarto já tem o cheiro de meu corpo.
Com o cinza fúnebre das tumbas,
as pombas arrulham nas telhas e não me dão paz.


Fracasso para poder contar aos filhos.
Pouco resta de minha intuição.
Aqui estou, como tu, cavando
uma posição para não morrer à toa.


Não há regresso possível sem que alguém fique.


Toco o sexo, toco, movido pelo tédio,
esperando uma explosão áspera,
o dobrar da seiva, toco, conferindo se respiro.


Quem não chegou a uma estação tarde de si
a pressentir que o último ônibus já passou?


("Como no céu/Livro de Visitas", Bertrand Brasil, 2005)












Separar-se é ter a residência invadida.
Conferir peças na sala, armário,
carteira, com pouca noção exata
do que foi embora.
Olhar desconfiado
aos objetos que viram
e nada dizem.


Separar-se, uma porta
arrombada por dentro.


("Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)








Fazer as coisas pela metade
é minha maneira de terminá-las.


("Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)










bio/biblio
Nasceu em 1972, na cidade de Caxias do Sul (RS), Fabrício Carpi Nejar, Carpinejar, é poeta, cronista, jornalista e professor. É autor dos livros de poesia "As Solas do Sol" (1998, 2ª edição, Bertrand Brasil), "Um Terno de Pássaros ao Sul" (2000, 3ª edição, Bertrand Brasil), "Terceira Sede" (2001, 2ª edição, Escrituras), "Biografia de uma árvore" (2002, 2ª edição, Escrituras), "Caixa de sapatos" (2003, Companhia das Letras), "Cinco Marias" (2004, 2ª edição, Bertrand Brasil) e "Como no céu/Livro de Visitas" (2005, Bertrand Brasil), do livro de crônica "O Amor Esquece de Começar" (Bertrand Brasil, 2ª edição, 2006), e dos infantis "Porto Alegre e o Dia em que a Cidade Fugiu de Casa" (Alaúde, 2004) e "Filhote de Cruz-credo" (Girafinha, 2006).


Em abril de 2007, publicou um novo livro de poesia, "Meu filho, minha filha", pela Bertrand Brasil, que já está na 2ª edição.


Recebeu vários prêmios como o Erico Verissimo 2006, pelo conjunto da obra, pela Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre; Olavo Bilac 2003, da Academia Brasileira de Letras; Cecília Meireles 2002, da União Brasileira de Escritores (UBE); duas vezes o Açorianos de Literatura, edições 2001 e 2002.


Carpinejar também foi traduzido ao alemão por Curt Meyer-Clason e assinou contrato com Italianova e Terre de Mezzo (Itália) e Éditions Eulina Carvalho (França). articipou de coletâneas no México, Colômbia, Índia, Estados Unidos, Itália, Austrália e Espanha. Em Portugal, a Quasi editou sua antologia Caixa de sapatos (2005).


Seu blog http://fabriciocarpinejar.blogger.com.br já ultrapassou a marca de 370 mil visitantes.








poética


Não desejo escrever como o pássaro canta, mas cantar como o pássaro escreve.

Monday, July 23, 2007


ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA




mencionado por:Segio Cohn
Fabrício Corsaletti
Dirceu Villa


menciona a:iuri pereira
cide piquet
helder perri ferreira
osmar portugal filho






3 poemas


Para uma menina cega,
como uma seguiriya,

A Ti, lua minguante,
Um rastro de cheia,
Pouco importam –
Estrelas que não podes contar.

Tua primavera em flora interna;
Como externa seria?

E são mais que tuas as cores
Quando se fecham: são delas,
Abrindo-se ao amplo do céu aprendido
Em cada sombra de outra;

Pois que o escuro – o céu de agora –
É onde guardas tuas mãos.

E apalpaste o infindo e o reconheceste
Vazio e com tua força,
Insinuada no mecanismo
De pálpebras que se fecham.



Só Tu sabes:
Como aquilo guardado se mostra.


E imaginas, no teu jardim do quarto,
Todo o universo como um céu de ontem,
Repetido sem dor e sempre –
Sempre como a cor se esquece e brilha.




(Livro de poemas, 1992)


i


Caridad vive em Viñales
Numa casa cheia de árvores.
Seu quintal tem todas as frutas do Caribe
Mamei, toronja, shirimoya, níspero, fruta bomba


Mamei é um tipo de sapoti
Consistência de papaya só que cor de rosa
e um gosto cor de rosa com aquele frescor do mamão


Ela me deu um espinho de uma árvore altíssima
brotavam do tronco
Que me daria proteção de la santeria,
Que los negros utilizan los vegetales, ellos...


Ela é uma negra com mais de oitenta anos
Descendente de escravos e chineses
Sua casa é visitada por gente de todo o mundo
Que simpatiza com seu carinho e sabedoria
Que deixam seus recados nas paredes das varandas




ii




Seu pomar é antiga herança de seus avós
Ali vive com a irmã e o cunhado
Que tocava gaita de boca com seu chapéu de folhas
secas trançadas
E não falava: La vie en rose, As time goes by, Chica de Ipanema...


Disse Caridad que gosta de novelas brasileiras
Porque são mais picantes que as colombianas
Sua casa é um templo cheio de penduricalhos:
caroços amarrados em fitas
Maços de cigarro enfileirados
Fotos de jornais e revistas o papa em Cuba Roberto Carlos
....................................................................................y Fidel
Seu sorriso de mulher única e simples encabulada e senhora
Seu cabelo preso com um lenço
Ela me deu três cigarros que os meus acabaram




(Viagem a Cuba, 1999)










À margem,
Onde não caem estrelas,
Conjuga-se o vergar das vigas mestras.


À margem,
Conspiram negras miragens,
Atentas como espelhos.


À margem estão
Os insones do século,
Febris pela ausência que se nota;


Tatuada no silêncio,
Presa às costas.


(Azul escuro, 2003)






bio/biblio
Nascido em São Paulo em dezembro de 1972. Estudos de medicina, filosofia, cinema e letras. Autor de Livro de poemas (Giordano, 1992), Viagem a Cuba (Hedra, 1999), Azul escuro (A Preguiça Editorial/Hedra, 2003) e XXX (Dolle Hund, 2003), de poemas; Autobiografia de um super-herói (Hedra, 2003), novela. Editor (Cosac Naify, Ácaro), tradutor (contos de Katherine Mansfield e Jacques Prévert; poemas de Jules Supervielle, Francis Jammes, Roberto Juarróz, Alejandra Pizarnik etc.).

Sunday, July 22, 2007


ADOLFO MONTEJO NAVAS


foto: Diana Pereira


mencionado por:
Janice Caiafa
Marcelo Diniz
Lu Menezes




menciona a:

(só menciono poetas que ainda não estão no blogue)
Age de Carvalho
Angela de Campos
Angela Melim
Alberto Martins
Anelito de Oliveira
Dora Ribeiro
Duda Machado
Eudoro Augusto
João Bandeira
Jussara Salazar
Maria Rita Khel
Milton Machado
Ronald Polito
Sebastião Nunes
Vivian Kogut




POEMAS

Nada que se pareça com nada.
Isso, para começar o dia
sem cartas nem tridente. Porque
depois sobe a temperatura
até o lugar da prova, ou a maré
desce e há que procurar de novo
o pequeno fio extraviado pelas coisas.

*
p / Gabriel
São pequenos ruídos de sabres
e lanças, às vezes pequenos lampejos
isolados, rendidos diante da iminência
da noite. Fogos contra
o Fogo, do outro lado da parede,
que a tarde dava por perdidos
no horizonte do tempo que arde?

*

A imagem volta, mas o som
não. A fotografia está detida
num lugar que já não existe,
ainda que olhe para aqui.
Pelas cores deve ser outono,
mas também não é certo.
A música está escrita nos olhos.

De Enquanto passa o vento (2001/04, inédito)
(Tradução do autor)


#








Nu é o nome
que apagamos juntos
com os lábios poentes de depois.
Êxtase de deus a que vens assim morrendo
na boca? Como reino
consagrado aos acentos, somos
relâmpago descendo ao alto,
até outro ritmo.

*

O sexo divide o amor em dois,
em um,
em nada que não seja o Éden agora,
cruzado de par em par,
no meio deste ar
possuído até a medula.
Soa tudo a paraíso, a antes dos lábios.

*

Espaço onde o cobre fala
mais alto. Cabeleira
alta, contrária a quase tudo,
diz-me onde se dilata o ruído
imensamente
doador da lascívia, seus ramos
vermelhos, de tinta errante, sedentos.


De Sem título, mas com ímã (2004/5, RevistAtlántica, 2006)
(Tradução Ronald Polito, revisão do autor)

#

Nomear o fio que se abre aos signos que vem pelo desfiladeiro. Si olho as palavras, pesam as pálpebras, atravesso, e assim sucessivamente. Compensa rodear de amarelo esta fissura, que alguns chamam poesia frente ao abismo invertebrado.


Corta e continua. O remoto contínuo é esse moto que não separa nada de seus lados, numerosos dados. Assim se filma: oh ação, privilegiada sobre as palavras em movimento, a ponto de se ferir. No salto se voa, com todas as cicatrizes.

A palavra qualquer só deveria ser aberta pelo acaso. Para desatar nós assíduos em nosso frente mais mortal.


Entre uma palavra e outra, um abismo. Sílabas cegas, desconhecidas.


De Cesuras (2005/6, inédito)
(Tradução do autor)

_______



BIO/BIBLIO
Adolfo Montejo Navas, poeta e crítico, nasceu em Madri em 1954 mas mora no Brasil há mais de quatorze anos. Colaborador de diversas publicações culturais da Espanha e do Brasil, é correspondente no Brasil da revista de arte internacional Lápiz, de Madri, desde 1998, onde publica periodicamente ensaios e artigos. Foi correspondente do jornal El Mundo, Madri, na metade da década de 90 e foi crítico de arte do site no.com.br. no período 2001/2002. Colaborou intensamente com a revista Cult, São Paulo (participou do dossier Joan Brossa –com João Bandeira– e organizou o dedicado à Literatura espanhola contemporânea). Faz parte dos conselhos da revista/site LaGioconda.art.br e do jornal de crítica K de São Paulo, e é colunista do site www.confrariadovento.com.br Possuí textos críticos em livros e catálogos de Waltercio Caldas, Arthur Omar, Efrain Almeida, Artur Barrio, Regina Silveira, Nelson Leirner, Miguel Rio Branco, Anna Bella Geiger, Eduardo Coimbra, Victor Arruda e José Rufino. Tem realizado numerosas curadorias na Espanha e no Brasil, e a partir de 2004 é palestrante da Rede de Artes Visuais (Funarte).
É autor de 30 Duetos, em Poemas-Cadernos de Literatura 3, com Armando Freitas Filho (Impressões do Brasil, 1996), Inscripciones (Coda, Madri, 1999), Íntimo infinito (Moby Dick, Rio, 2001), Pedras pensadas (Ateliê, São Paulo, 2002), Na linha do horizonte/Conjuros (7 Letras, Rio, 2003), 49 silêncios (Ed. de autor, Rio, 2004), 6 Poemas instrumentais (ed. objeto, 2005), Da Hipocondria (Ed.7 Letras, 2005), Esse animal de água (Espectro Editorial, Belo Horizonte, 2005), Sín título, mas com imán (Revista Atlântica, 29, Cádiz, 2006), Ventreadentro (com Diana Araujo Pereira, ed. do autor, Rio, 2007) e Sobretempo (ed. com Dupla Design, Rio, 2007). Como tradutor destacam-se Poemas de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, I, II e III (Hiperión, 1998) e Correspondencia Celeste (Nueva Poesía Brasileña 1960-2000) (Árdora, 2001), além de vários livros de Armando Feitas Filho (Cabeza de hombre, Hiperión, 1995; Cable tierra, DVD, 2002), Sebastião Uchoa Leite (Contratextos, DVD, 2001), Carlos Drummond de Andrade (Sentimiento del mundo, Hiperión, 2005), e em breve, Waly Salomão (Algarabías y otros poemas).
Tem recebido várias bolsas de tradução (do Dpto. Nacional do Livro-Biblioteca Nacional) e bolsa de pesquisa cultural (Literatura) da RIOARTE, 2001, para o livro É chapa quente - Dicionário de vozes cariocas, , em processo de publicação. Idealizador e organizador do livro de Anna Bella Geiger – Territórios, passagens, situações (Ed. Casa da Palavra, Rio, 2007), com o apoio da Petrobrás / Memória das Artes – 2004. Autor também de Marcos Chaves (Ed. Casa da Palavra, Rio, 2007). Em breve aparecerá o volume “Aproximações críticas (Arte brasileira contemporânea)” (Ed. Unimarco, São Paulo), com parte da produção crítica de artes visuais e em 2008 o ensaio “Fotografia e Poesia (afinidades eletivas)” (Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro). Vem realizando a partir de 1994 diversas exposições como artista plástico de poemas-objeto e visuais, sendo a última mostra individual Livros-objeto-livros, no Centro Dragão do Mar, Fortaleza, 2006, e em parceria, Exposição de arte, de Eduardo Coimbra, com Amália Giacomicini, Paço Imperial, Rio, 2006.

&





POÉTICA
Só se escreve a partir de certa abissalidade, da irregular consciência de que entre a linguagem e o mundo há sempre uma fresta, uma fissura. Escreve-se então na procura de sentido longe da mimese, fora das polaridades envelhecidas, no exercício do equilíbrio: poesia como limiar, como corda pela qual se atravessa o vazio da página. A invenção de um território verbal que promete chamar-se poema por extenso, nunca corresponde inteiramente à literatura, é dicção que ultrapassa a fronteira de nosso conhecimento para chegar a uma outra celebração do nomear (íntimo/coletivo): leitura ainda primogênita onde se trocam signos por sinais, cesuras por palavras. (Rio, dezembro de 2006)
Ou

POÉTICAS*
I
Guardas e roubas das palavras os motivos, os vice-versa dobrados.
Ou impasse ou chama, ou as duas coisas de uma vez, segundo o dia e o ofício.

II
Sobre a mesma linha, qualquer pretexto das palavras é mortal.
Puro duelo dos motivos dentados, cara a cara.

III
Vergonha de que as palavras saibam mais do que é devido, de que caiam
nesse lado, sem dentro e fora, cravado mas sem empunhadura.

(*Tradução Armando Freitas Filho, revisão do autor)






Friday, July 20, 2007

FABRÍCIO MARQUES





mencionado por:
Ricardo Aleixo
Maria Esther Maciel

menciona a:
Jorge Emil
Maria Esther Maciel
Ricardo Aleixo
Guilherme Mansur
Maria do Carmo Ferreira
Edmilson de Almeida Pereira



3 poemas - do livro “meu pequeno fim” (2002, Scriptum).


ÊXODOS

vá para o ardor que te adense
vá para o salto que te sacuda
vá para o passado que te pertence
vá para o ruído que te restaure
vá para o frêmito que te festeje
vá para o vértice que te vasculhe
vá para o crepúsculo que te carregue



A TARTARUGA TARTAMUDA

deixem passar, abram alas amiúde
à tartaruga que, de ruga em ruga,
só pede calma ao tempo, tartamuda,
pra aprender a envelhecer dentro
da juventude, de ruga em ruga



OUTRA COISA

não é arma
não é arte
que disfarça
é outra coisa
parece que é
babel
balbúrdia
alvoroço
mas não
é outra coisa
não é
estardalhaço
não é farfalhar
de árvores
é outra coisa
que deu o ar
de sua graça





bio / biblio

Fabrício Marques nasceu em 22 de novembro de 1965, na cidade de Manhuaçu, leste de Minas. Poeta e jornalista, é mestre em teoria da literatura, com dissertação sobre a poesia de Paulo Leminski, e doutor em literatura comparada, com tese sobre a poesia de Sebastião Nunes (as duas pós-graduações na UFMG). Foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais (2004), e também trabalhou na revista Palavra (2000). Publicou Samplers (poemas, editora Relume Dumará, 2000, Prêmios Culturais de Literatura do Estado da Bahia), Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (ensaio, Autêntica, 2001), Meu pequeno fim (poemas, Scriptum, 2002) e Dez conversas (entrevistas com poetas contemporâneos, edição bilíngüe, Gutenberg, 2004). Participa das antologias Na virada do século: poesia de invenção no Brasil (orgs. Cláudio Daniel e Frederico Barbosa, Landy, 2002), e Poesia em movimento (org. Jorge Sanglard, Editora da UFJF, 2002). Também integra Os cem menores contos brasileiros do século (org. Marcelino Freire, Ateliê Editorial, 2004).



poética

POESIA-ZELIG

Em “Zelig” (1983), Woody Allen apresenta um “documentário fictício” em que o protagonista assume características (sotaque, etnia, profissão) de determinada pessoa ou grupo de que se aproxima. Para Robert Stam e Ella Shoat, esse personagem-camaleão “acaba por fazer uma metáfora da própria intertextualidade, na medida em que o filme, da mesma forma que seu protagonista, assume a coloração de seus textos interlocutórios”.
Minha poesia é uma espécie de Zelig, que se apropria de “palavras alheias”, usadas com outra intenção, e dá-lhes uma nova orientação irônica. Essa especificidade pode ser sintetizada no verso de um poema, “Fotografias”, em que inverto um verso conhecido: “Segurem-se/ O outro é um eu”.
Ricardo Aleixo (2000) observa nessa poética, na tentativa de dizer em nome de um “terceiro”, de um “sujeito-ninguém”, uma “vivência serena e irônica, auto-irônica, de um exercício de “dissolução do ego” via poesia: afinal, quem fala ao leitor, daí de onde nenhuma “identidade” fala?”
As muitas vozes que compõem a voz do autor não o despersonalizam; e o autor, paradoxalmente, cria sua “identidade” da “junção dos destroços”, dessa escrita fragmentária.
De sampler em sampler, minha poesia é um rufar de pétalas no ouvido da memória. Mas sem pétalas.