Saturday, October 14, 2006

JANICE CAIAFA


foto: Vladimir Freire


mencionada porPaula Glenadel


menciona a
Patrícia Burrowes
Ronald Polito
Vivien Kogut
Carlos Tamm
Paulo Henriques Britto
Adolfo Montejo Navas


poemas



Ruas perigosas
Se me viro
me vejo chique
na poça da rua
me viro na rua
vejo na poça d'água
o rebrilho do batom
a meia corre o fio
no beco corro o risco
do cabelo à cata de um grampo
que envie
na carne, coiffure de lanhos
linhas varam o céu nojento
telefone e telégrafo
no terreno baldio
(Do livro Neve Rubra)


Corpo celestePôs-se o Sol, majestade
depôs-se o rei
para repor-se todo dia,
foi-se a esfera da tarde
rosto que cai sob o rochedo.
Para perder-se na curva da Terra
Para dispor-se os fogos a furto
Para expor-se a um povo remoto
Para voltar-se rumo
a outro horizonte
para a nós estar em puro
Poente. Indo, o dia
resta nas coisas em torno
E a noite surge ela-mesma
sem ser seu oposto:
não sua ausência
mas um outro reino
que o pôr-se próprio inaugura.
(Do livro Fôlego)



Três Deusas

Afrodite
Saiu do mar Afrodite
de uma só vez, cortando
a água e soltando
o ar com estrondo
numa borbulha salgada.
Seu trono redondo
que era concha de coral
se abriu com o pulo
violento até a tona,
sendo o leito natural
de seu nascimento.
Foi uma irrupção e não
um surgimento plácido,
espuma fácil – mas aguda
emergiu a deusa-medusa
expondo a beleza
ao golpe e aos ares.


Mesopotâmia
A Mesopotâmia saiu do rio,
de entre rios, serviu
de leito, de margem à água:
saiu inteira, subiu
em torres, em altos palácios
surgiu perfeita
fértil e severa
a bela terra
hoje destruída
por armas modernas
se conserva dádiva.


Palas Atena
Atena saiu da cabeça de Zeus.
Em dores terríveis o deus
pediu a Hefestos que a rachasse
e da fenda Palas Atena nasceu,
como se sabe pela lenda,
irrompeu de espada e lança
como um exército avança
de surpresa, já pronta perfeita
em túnica de guerreira
a deusa única e primeira
absoluta intensa
que produziu a si mesma
sem descendência
a deusa máxima da inteligência
que emergiu pelo golpe do ferreiro
da cabeça mundana do universo.

(Do livro Ouro)









bio/biblio
Janice Caiafa nasceu no Rio de Janeiro. É poeta, antropóloga e professora da Escola de Comunicação da UFRJ. Publicou, entre outros, Jornadas urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro (Editora FGV), Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes (Relume Dumará) e, pela 7Letras, Neve Rubra, Fôlego, Cinco Ventos e Ouro. Traduziu As Rosas, de Rainer Maria Rilke (7Letras). Tem vários artigos e poemas esparsos publicados – por exemplo, na Trópico, revista on line.




poética

Algumas anotações
Poesia é pura experimentação. Ali o trabalho com a expressão é o mais arriscado, o poema só prossegue num percurso de ousadias, de busca de mais intensidade. A poesia se dedica especialmente a essa aventura, ela investe antes de tudo na tensão que abre a língua para uma expressão criadora. Ao mesmo tempo, o poeta não trabalha contra a língua. Muitas vezes se observa como tentativas de surprender a língua contra ela mesma resultam em repetições ou volteios que acabam eles próprios criando padrões, resultando portanto em meros truques técnicos. O trabalho poético recolhe na língua o que já se dá como variação – em acordo com ela e ao longo de suas linhas mais intensas e estranhas.
O poema oferece ao leitor essa experiência de estranhamento – o confronto com a variação produz uma relação de novidade com a língua ao mesmo tempo em que faz pensar e desperta afetos potentes, introduzindo também uma diferença na nossa relação com o mundo. Porque a expressão criadora está ligada aos conteúdos mais arriscados também, mais transformadores.
É uma oferta porque o trabalho da literatura – e fortemente aí o da poesia – acolhe o leitor, produzindo novas experiências, só se realiza se vai ressoando suas descobertas para outros, engajando-os nessa experimentação com a linguagem, o afeto e o pensamento. É um campo criador que a escritura deflagra. Esse o engajamento, a política da literatura: criar, fazer criar. Vê-se como o escritor, o poeta figuram aí como componentes desse arranjo criador – e não como autores plenos de uma obra que se torna pessoal e alimenta uma carreira. Quando a dimensão autoral precede o texto, toma a dianteira, só faz obstar o processo criador. Para que se produza a criação como processo, como campo – ou seja, para que haja literatura –, o escritor deve entrar como singularidade (e não como identidade cristalizada), como um componente crucial e singular desse arranjo.
Como a poesia está na ponta, arriscando, arremessando-se, aguçando radicalmente a experimentação que é questão na literatura, ela mais fortemente ainda adere a esse engajamento tão especial. Rilke comparou a aventura poética com a respiração, por sua atividade de troca essencial com o mundo, tal a entrada e a saída do ar do ambiente num corpo, produzindo vida. Essa troca vital bem realizada produz um espaço raro, o espaço poético ou "angélico", onde o poema vinga, acontece.
Mário Quintana também falou do poema como uma forma vital de respiração – já por trabalhar diretamente com o ritmo, já por insuflar por isso mesmo uma respiração nova no leitor – "abre uma janela", "salva um afogado". É fascinante como um poema revolve as palavras e nos faz entrar num ritmo outro, nos oferecendo uma nova experiência da linguagem e no mesmo golpe conseguindo com isso uma sugestão também inovadora na nossa relação com a vida. É assim que a poesia vive antes de tudo dessa entrega ao papel de criar e fazer criar.
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2 comments:

Anonymous said...

Lindo movimento antropofágico
tambem sou estudante de antropologia e
parabens por toda a inspiração-alteridade.

Anonymous said...

Acho muito lindo segundo poema.
Felicitações por ele e pelos outros, que também são belos.
abs,
Robson Câmara