Pedro Maciel
menciona a
Eucanaã Ferraz
Nelson Ascher
Paulo Henriques Britto
Gastão Cruz
Alex Varella
poemas
menciona a
Eucanaã Ferraz
Nelson Ascher
Paulo Henriques Britto
Gastão Cruz
Alex Varella
poemas
ECO
A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado;
e embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e usa do outro uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa e enfim ele não resiste
à beleza e diz “sinistro!” e ouve eco ao lado.
Antonio Cícero
[Do livro Guardar]
PROVA
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
SAIR
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.
[Do livro A cidade e os livros]
A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado;
e embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e usa do outro uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa e enfim ele não resiste
à beleza e diz “sinistro!” e ouve eco ao lado.
Antonio Cícero
[Do livro Guardar]
PROVA
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
SAIR
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.
[Do livro A cidade e os livros]
BREVE BIOBIBLIOGRAFIA DE ANTONIO CICERO
Antonio Cicero nasceu no Rio de Janeiro em 1945. Poeta e ensaísta, ele é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (Rio de Janeiro: Record, 1996), contemplado com o Prêmio Nestlé de Literatura, e A cidade e os livros (Rio de Janeiro: Record, 1996), assim como do ensaio filosófico O mundo desde o fim (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995) e do livro de ensaios sobre poesia e arte Finalidades sem fim (São Paulo: Companhia das Letras, 2005). Junto com o poeta Waly Salomão, editou o livro de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994) e, em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, organizou a Nova antologia poética de Vinícius de Moraes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Além disso, é autor de diversas letras de música, contando como parceiros e intérpretes, além de sua irmã, Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco entre outros. Antonio Cicero acaba de escrever um livro de poemas, intitulado Prova, que espera lançar no segundo semestre deste ano.
QUE É A POESIA?
Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema “O rio”, de Manuel Bandeira:
O RIO
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.
Desde o título, “O rio”, torna-se inevitável pensar no rio heraclítico, em que não se pisa duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão:
Ser como o rio...
Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo:
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo. Mas quem é que aqui deseja? Dir-se-á que é o poeta, ou talvez o “eu” lírico quem deseja; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer “eu”. A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas:
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.
Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, mais do que de Heráclito, que me lembro, e de Jorge Luis Borges, para quem, segundo o poema “Nubes (I)”,
No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allenará. Lo es la Odisea
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos...
As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens o poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A Odisséia, porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua cintilante superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.
Todos os entes provêm do não-ente e têm como causa o não-ente – isto é, o movimento, a mudança, a vida, o estar, o tempo – do qual provêm. Neles porém o não-ente negou a si próprio, e se transformou em ente. Também o poema é um ente, mas um ente que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d’água do movimento originário. Não só, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo de poesia essa propriedade do poema.
1 comment:
Verdadeiro panóptico digital
eis o saite que me prendeu a atenção!!!
Maurice Blanchot : a capacidade ou os meios de escutar esse silêncio.
seu texto, tanto a poesia, quanto o texto sobre o que é a poesia, traduzem pra mim toda uma epopéia de quem entende e faz da vida uma fluídez e vida constante. o fogo heraclitiano transfere todo movimento do rio-vida. assim, evoé aos Concênticos encontros, cinzentos, lentos-pardos, tecidos
no encontro que anelar que é o click-link de sua poesia e historia,e assim seja a vida de quem quer aceitar e viver o entrar no rio-caudaloso-do eterno retorno.
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