Fabrício Marques
menciona a
Eustáquio Gorgone de Oliveira
Júlio Polidoro
Ricardo Aleixo
Ronald Augusto
Salgado Maranhão
poemas
NA CASA DE MEU PAI
um que se arranha tem seu canto. Se quiser ir ao
mundo faz a mala, vai. O pai cede o manto, a seu
tempo garagem e porto. Na casa, um observa.
O pai, que é de todos, se erra um jogo acerta de
outro jeito. Um está na porta, não entra, não sai e
se move mais que a gente carteando naipes. Com
ele o pai entesa. Ele, o um que é nós.
(do livro Sociedade Lira Eletrônica
Black Maria, 2002)
ILUSTRAÇÃO
SEM BALAFONG
Viver agonia ao telefone
reduz um homem à medula.
Tira-lhe humor e fervor
como se filma uma blusa.
Não resta que lhe salve
postal de um cataclisma.
Uma página ao acaso em
que estivera uma moeda.
Um crime sem a vítima
para a polícia perfeito.
Um cinzeiro sobre tapete
e a vida que se fumara.
Uma névoa sob encomenda
a esse sumir desejado.
Um pai vindo de longe
com sua mala de pássaros.
Uma senhora sua imagem
de margaridas em decalque.
Um rádio-táxi na porta
ao tempo que se quisera.
Viver agonia ao telefone
mata um homem aos poucos.
Só resta que lhe salve
a mãe rezando por hábito.
Uma carta, enfim uma,
em meio ao jornal diário.
(do livro Veludo azul, 2002)
INSTRUÇÃO DO HOMEM PELA POESIA
EM SEU RIGOROSO TRABALHO
1
O nome diquixi se arrumou na sombra. É de
sua natureza habitar os vãos as eiras: entre o
que há-de-ser.
O lápis, mais que a vontade, quer o nome e a
coisa, a família da palavra num corpo. Escla-
recido.
E se desejarem que eu testemunhe o viso visto,
só de meus olhos? Erma campanha. Eu e o
intervalo das coisas com outras onças por
dentro.
O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escre-
vo ganha tantas de resto. E se nunca o escrevo
terá deveras uma cabeça?
O engaste é de manhã, quando perguntarem. O
visto era vivo, visagem de carne e osso? Ou
liames de sua letra e sua vista mal cordatas?
Se o diquixi nem fosse, mas coisa reles: fio e
pavio, tecido e teia – ainda assim, como furtá-
lo em sua mudança.
Melhor escritura a que revela revel.
2
Porém, escrevo. Para cem cartas mil lagartas.
Quando a dúvida imagina sentidos a terra já
se viu madrinha de meus provérbios.
Verbos provados, de camisa, colete e sapato.
Assim como no ir à missa à procissão para ser
mais amado que o santo.
Quem não risca não sabe os rios da palavra, o
labirinto de haver escrito sem estremecer. Eu
mesmo me avio: parceiro da chuva, do capim
cebola preparo um livro de cortar.
E se perguntam: ainda não é manhã? É quando
eu no verbo faço manhã ou noite. A treva é a
escrita, nem mais, nem pois. Deus não entor-
tou linhas por que escrevia canhoto?
Medo o só da escrita com leitor viajante. Mas
se há leitor de lidas, a e b são histórias infer-
nas.
Com modos e truques de ouvir.
3
O nome diquixi escrevo e diquixi não é. Mas
cutelo e cutelo também não fica sendo.
O tudo ponho em lápis, fileira formiga de le-
tras certas. E não me alegro porque não che-
gam miúças na terra pós-chuva.
Escrevo diquixi e não vinga: outra coisa é di-
quixi escrito. Tudo somenos.
Entorto linha bem procedo e a escrita morde.
E se escrevo com letra de não grafar: o ledor
resolve?
Como Antão em sua caverna tento.
O bicho no entanto.
4
O nome diquixi se arrumou na sombra. Som-
bra a do meu escrito.
Sob a pele do verbo o lobo o crocodilo-mor.
Tudo mudado, mas sem doma. Como o guará
cortando a estrada.
Agora posto, concordo. A palavra vista é uma
cabeça com outras onças: um couro no tempo
da madeira.
Mas não é um tambor: a palavra.
Como um tambor é pouco sem outras coisas
dentro.
Como o torpor não é sem as roupas do sol.
O nome diquixi escrevo e diquixi parece. Sob
a unha a paz da palavra seje.
(do livro O homem da orelha furada, 1995)
BiO/BiBLiO:
Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz de Fora (MG) em 1963. É professor na Faculdade de Letras da UFJF. Mestre em Literatura Portuguesa, Mestre em Ciência da Religião, Doutor em Comunicação e Cultura com Pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Zurique. Ensaísta, publicou em co-autoria Negras raízes mineiras: os Arturos (2. ed. 2000), Assim se benze em Minas Gerais: notas sobre a cura através da palavra (2. ed. 2004), Arturos: olhos do rosário (1990), Mundo encaixado: significação da cultura popular (1992), Do presépio à balança: representações sociais da vida religiosa (1995), Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira (2001), Flor do não esquecimento: cultura popular e processos de transformação (2002), Ouro Preto da palavra: narrativas de preceito do Congado em Minas Gerais (2003). Publicou em 2005, individualmente, Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual de Candombe. Sua obra poética foi editada em quatro volumes: Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003) e As coisas arcas (2003). Em literatura infanto-juvenil editou Cada bicho um seu canto (1998, poesia), O menino de caracóis na cabeça (2001, prosa), Coleção Bilbeli (2003, poesia), O primeiro menino (2003, poesia), Os reizinhos de Congo (2004, prosa), Histórias trazidas por um cavalo marinho (2005, prosa). Editou, em 2005, Signo cimarrón (poesia) e Loas a Surundunga: subsídios sobre o Congado para estudantes de ensino médio e fundamental (didático). Em 2006, publicou O Congado para crianças: Coleção Olerê (poesia).
POÉTICA
A informação sobre as poéticas possíveis me estimula a transitar entre os diferentes modos de experimentar a poesia. A vivência desta, por isso, tem sido a vivência do mais que um em mim. Uma tentativa – restrita, com certeza – de estar em casa e no exílio, na natureza e na cultura, simultaneamente ancorado e em viagem. Essa tensão, que o poeta haitiano Jean-Claude Charles chamou de enracinerrance (“un mot qui est proche de la figure de l’oxymore“), descortina um repertório de linguagens em que a solidariedade e o conflito, a economia e o excesso podem ser percebidos não apenas como oposições mas, antes, como modos de fertilização da criação poética.
menciona a
Eustáquio Gorgone de Oliveira
Júlio Polidoro
Ricardo Aleixo
Ronald Augusto
Salgado Maranhão
poemas
NA CASA DE MEU PAI
um que se arranha tem seu canto. Se quiser ir ao
mundo faz a mala, vai. O pai cede o manto, a seu
tempo garagem e porto. Na casa, um observa.
O pai, que é de todos, se erra um jogo acerta de
outro jeito. Um está na porta, não entra, não sai e
se move mais que a gente carteando naipes. Com
ele o pai entesa. Ele, o um que é nós.
(do livro Sociedade Lira Eletrônica
Black Maria, 2002)
ILUSTRAÇÃO
SEM BALAFONG
Viver agonia ao telefone
reduz um homem à medula.
Tira-lhe humor e fervor
como se filma uma blusa.
Não resta que lhe salve
postal de um cataclisma.
Uma página ao acaso em
que estivera uma moeda.
Um crime sem a vítima
para a polícia perfeito.
Um cinzeiro sobre tapete
e a vida que se fumara.
Uma névoa sob encomenda
a esse sumir desejado.
Um pai vindo de longe
com sua mala de pássaros.
Uma senhora sua imagem
de margaridas em decalque.
Um rádio-táxi na porta
ao tempo que se quisera.
Viver agonia ao telefone
mata um homem aos poucos.
Só resta que lhe salve
a mãe rezando por hábito.
Uma carta, enfim uma,
em meio ao jornal diário.
(do livro Veludo azul, 2002)
INSTRUÇÃO DO HOMEM PELA POESIA
EM SEU RIGOROSO TRABALHO
1
O nome diquixi se arrumou na sombra. É de
sua natureza habitar os vãos as eiras: entre o
que há-de-ser.
O lápis, mais que a vontade, quer o nome e a
coisa, a família da palavra num corpo. Escla-
recido.
E se desejarem que eu testemunhe o viso visto,
só de meus olhos? Erma campanha. Eu e o
intervalo das coisas com outras onças por
dentro.
O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escre-
vo ganha tantas de resto. E se nunca o escrevo
terá deveras uma cabeça?
O engaste é de manhã, quando perguntarem. O
visto era vivo, visagem de carne e osso? Ou
liames de sua letra e sua vista mal cordatas?
Se o diquixi nem fosse, mas coisa reles: fio e
pavio, tecido e teia – ainda assim, como furtá-
lo em sua mudança.
Melhor escritura a que revela revel.
2
Porém, escrevo. Para cem cartas mil lagartas.
Quando a dúvida imagina sentidos a terra já
se viu madrinha de meus provérbios.
Verbos provados, de camisa, colete e sapato.
Assim como no ir à missa à procissão para ser
mais amado que o santo.
Quem não risca não sabe os rios da palavra, o
labirinto de haver escrito sem estremecer. Eu
mesmo me avio: parceiro da chuva, do capim
cebola preparo um livro de cortar.
E se perguntam: ainda não é manhã? É quando
eu no verbo faço manhã ou noite. A treva é a
escrita, nem mais, nem pois. Deus não entor-
tou linhas por que escrevia canhoto?
Medo o só da escrita com leitor viajante. Mas
se há leitor de lidas, a e b são histórias infer-
nas.
Com modos e truques de ouvir.
3
O nome diquixi escrevo e diquixi não é. Mas
cutelo e cutelo também não fica sendo.
O tudo ponho em lápis, fileira formiga de le-
tras certas. E não me alegro porque não che-
gam miúças na terra pós-chuva.
Escrevo diquixi e não vinga: outra coisa é di-
quixi escrito. Tudo somenos.
Entorto linha bem procedo e a escrita morde.
E se escrevo com letra de não grafar: o ledor
resolve?
Como Antão em sua caverna tento.
O bicho no entanto.
4
O nome diquixi se arrumou na sombra. Som-
bra a do meu escrito.
Sob a pele do verbo o lobo o crocodilo-mor.
Tudo mudado, mas sem doma. Como o guará
cortando a estrada.
Agora posto, concordo. A palavra vista é uma
cabeça com outras onças: um couro no tempo
da madeira.
Mas não é um tambor: a palavra.
Como um tambor é pouco sem outras coisas
dentro.
Como o torpor não é sem as roupas do sol.
O nome diquixi escrevo e diquixi parece. Sob
a unha a paz da palavra seje.
(do livro O homem da orelha furada, 1995)
BiO/BiBLiO:
Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz de Fora (MG) em 1963. É professor na Faculdade de Letras da UFJF. Mestre em Literatura Portuguesa, Mestre em Ciência da Religião, Doutor em Comunicação e Cultura com Pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Zurique. Ensaísta, publicou em co-autoria Negras raízes mineiras: os Arturos (2. ed. 2000), Assim se benze em Minas Gerais: notas sobre a cura através da palavra (2. ed. 2004), Arturos: olhos do rosário (1990), Mundo encaixado: significação da cultura popular (1992), Do presépio à balança: representações sociais da vida religiosa (1995), Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira (2001), Flor do não esquecimento: cultura popular e processos de transformação (2002), Ouro Preto da palavra: narrativas de preceito do Congado em Minas Gerais (2003). Publicou em 2005, individualmente, Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual de Candombe. Sua obra poética foi editada em quatro volumes: Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003) e As coisas arcas (2003). Em literatura infanto-juvenil editou Cada bicho um seu canto (1998, poesia), O menino de caracóis na cabeça (2001, prosa), Coleção Bilbeli (2003, poesia), O primeiro menino (2003, poesia), Os reizinhos de Congo (2004, prosa), Histórias trazidas por um cavalo marinho (2005, prosa). Editou, em 2005, Signo cimarrón (poesia) e Loas a Surundunga: subsídios sobre o Congado para estudantes de ensino médio e fundamental (didático). Em 2006, publicou O Congado para crianças: Coleção Olerê (poesia).
POÉTICA
A informação sobre as poéticas possíveis me estimula a transitar entre os diferentes modos de experimentar a poesia. A vivência desta, por isso, tem sido a vivência do mais que um em mim. Uma tentativa – restrita, com certeza – de estar em casa e no exílio, na natureza e na cultura, simultaneamente ancorado e em viagem. Essa tensão, que o poeta haitiano Jean-Claude Charles chamou de enracinerrance (“un mot qui est proche de la figure de l’oxymore“), descortina um repertório de linguagens em que a solidariedade e o conflito, a economia e o excesso podem ser percebidos não apenas como oposições mas, antes, como modos de fertilização da criação poética.
2 comments:
naum morde naum
Edimilson de Almeida Pereira
“Pode-se apostar que o homem desaparecerá, como um rosto de areia no limite do mar” ( Michel Foucault)
poesia - diferença
poeticar - ablação
extrair - um nao sei o que.
afonso alves
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