Saturday, October 27, 2007

ANA GUADALUPE



mencionada por:
renato mazzini
bruna beber

menciona a:
ademir demarchi
alice sant'anna
eduardo siqueira
renato mazzini
sabrina bandeira lopes





poemas:


guerra

tique nervoso
à espera de alguém
que venha

beber água
desabotoar as calças
jogar bola

atirar no macio
arrancar os músculos
acumular fôlego

pra sufocar
com o próprio peso
o peso do outro:

uma bigorna
um piano
um travesseiro.




band-aid em lixo de hotel familiar

permita-me dedilhar
suas veias – poéticas –
convencer que compre
um álbum

o mapa – geográfico –
do mundo no corpo humano
em figurinhas pra recortar
seus exageros

pra ensinar – científico –
que chagas são os cortes
permanentemente abertos
dos hemofílicos




vupt

só leu um livro na vida
que falava sobre o vento
com voz fina

se lhe escrevo um verso
e leio em voz alta
não vê graça

não sabe ouvir pausas
como as minhas
nossas idas e voltas

agora não adivinha
que carrego um poema
pra entregar antes que vá
embora junto com a ventania




bio
tenho 21 anos, vivo no paraná (nasci em londrina, moro em maringá) e estou no 5º ano de letras. já fui professora de inglês, fiz tradução e estágio em biblioteca pública. atualmente sou webdesigner aprendiz e faço revisão de texto. nas horas vagas publico (inutilidades e) poemas em blogs como o
http://welcomehomeroxy.blogspot.com/search/label/poemas e na coluna semanal chamada selo - que mantenho há seis meses no jornal o diário (do norte do paraná).



poética

meu plano B é dizer que poemas nem sempre são sinceros e às vezes perdem a graça quando colocamos os óculos.


Saturday, October 20, 2007



anéis



quero alegria pro poema
mas os versos saem em mi


tento decorar as penas
estão desbotadas


todas as cores
vejo em preto e branco


canto para esquecer
a grande confusão das coisas simples


não sei de que material seco são feitas
as perdas.


broches

aproxima-se o desconhecido
e junto dele a gritaria
dos grandes começos

ainda não sabe dizer
com quantas rouquidões
se faz um recuo

por isso o silêncio e a tosse
infalível técnica
de disfarces.


brincos

o medo amarela
os dentes corrói
todas as tentativas
de nomeá-lo

nada nos assegura
nem ninguém poderá
nos defender: estamos vivos

e se do paraíso estamos longe
cada vez mais longe quero viver
distante, muito distante
do que só é possível no papel.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


MINIBIO
Bruna Beber tem 23 anos, é carioca, mas vive em SP há dois meses. Formou-se em Comunicação Social (Publicidade) em 2005, e trabalhou como redatora publicitária, jornalista e tradutora. Também já trabalhou com pesquisa, produção e revisão de conteúdo para livros e fez roteiros para a TV Futura. Hoje trabalha no departamento de Internet (Websurfing) de uma agência de Marketing de Guerrilha.
Publicou, em 2006, seu livro de estréia, A fila sem fim dos demônios descontentes (esgotado), pela Ed. 7 Letras. Colaborou com diversos sites e revistas impressas de literatura, poesia, música e Internet: Portal Literal, Paralelos (revista virtual e blog), Bala, Escritoras Suicidas, A Máquina do Mundo, Latin.Log, Capricho e Entrelivros.
Já teve seus poemas publicados na Alemanha, Argentina e México. Edita o blog Bife Sujo ( http://badtrip.com.br/bifesujo/) e o poetrycast Mike.
Os poemas acima estão no seu próximo livro - Balés - ainda sem data de publicação.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

POÉTICA

Movimento.


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Saturday, October 13, 2007

RÉGIS BONVICINO





Masé Lemos

menciona a:
João Cabral de Melo Neto
Carlos Drummond de Andrade
Murilo Mendes
Torquato Neto
Paulo Leminski


Poemas:

Caminho de hamster



Fedendo a cigarro e a mim mesmo
cruzo uma avenida
ao anoitecer
sirenes, carros

vozes abafadas
avenida larga e áspera
numa rua transversal
o cadáver de um cachorro

atropelado
rodas metálicas em ritmo lento
fedendo a esgotos e a mim mesmo
a um pouco de fogo, do isqueiro

fedendo como aquela maçã podre
fedendo a música estúpida
desses tempos
e a mim mesmo

o lixo recolhido exala
um cheiro nítido na calçada
fedendo a sapatos e a mim mesmo
a ratos, ao suor dos néons

a cadeiras e a mim mesmo
a notícias inúteis e a mim mesmo
fedendo sob a lua
narinas entupidas de gás carbônico

o som do motor do ônibus
fedendo as mesmas camisas
fedendo a miopia e a mim mesmo
fedendo a esquinas

exalando cheiros
fedendo a expectativas
que no entanto acabam
na próxima linha





Duas linhas



Mula de kleins, valentinos
guccis, missonis
cavalga num camelo
num gato e numa limusine

para as lentes de Testino
mula de Versace
fazendo sexo sáfico
com Sadie e Davinia

sempre em posições
impossíveis para dormir
andando a cavalo
com Marianne Faithfull

ouvindo as guitarras bárbaras
de “Sister Morphine”,
afogada em poças de perfume
guia dos amigos

também desprezíveis
obnóxios, párias
que fazem swing
musa do thatcherismo

bomba bêbada
usa disfarces
para revelar-se
no começo, transportava

nas calcinhas e sutiãs
em valises de Klein
delicia-se com iguarias em bandejas
I hate Kate

I push Bush
ficou quatro semanas imobilizada
por argolas fixas
grades pontiagudas

num quarto escuro
em permanente eclipse
e foi lavada com água suja
para que refletisse



a fome arranca as entranhas
o som arrebenta os tímpanos
botas de veludo Alexander McQueen
negras

outro soldado entra
no quarto o alarme soa
estridente
e multiplica o suplício





DEFINITIONS OF BRAZIL

Brazil is located on the southern tears of the Americas
Brazil is a jungle with snakes who eat cakes
Brazil speaks Lebanese, Portuguese, Japanese, Guarnaríse, Tupiese, Inglese
Brazil is an adulterating medley of intoxicated syncopations
Brazil has no relationship with itself because it has a relation only to itself
Brazil lays its cool hands on your hot head
Brazil was colonized by Indians who turned the Portuguese into natives
Brazil’s Tolstoy is now doing tricks in a favela
Brazil is a land of palms and psalms
Brazil is the model of a model
Brazil is a charm bracelet that has become the necklace of the continent: São Paulo more European than St. Paul, Brazillia more bureaucratic than Geneva, Rio more alluring than Boca
“They've got an awful lot of coffee in Brazil”
In Brazil, the cuckoo sings “macaw, macaw, macaw”
Brazil is private property of no man’s God and no woman’s Fury
The patron saint of Brazil is its dreams, just as is its Devil
Brazil is a carioca not a polka
Brazil is Carmen Miranda’s Tutti Frutti hats, Caetano Veloso’s all-weather tropicalismo, Bebel Gilberto’s number on the charts.
Brazil is the Elis and Tom “Waters of March” International Airport and Spa
Brazil is caipirinha with feijoada (caipira with fedora)
Brazil is home of the cassava or tapioca, what you call yuca, or mandioca or aipim or moogo or macaxeira or singkong or tugi or balinghoy or manioc
Brazil is the black mask of the PCC inscribed with the words traitor, betrayer
Brazil is 186 million stories, 186,000 poems, but only these definitions
Put your stocks in Brazil and your bonds in China, or is it the other way around?
Brazil is a figment of the imagination of the Amazon
If Pelé is poet laureate of Brazil, without ever writing a word, then Ronaldo Gaúcho
is the Nijinsky, without ever having set foot in the Ballet Russe
Brazil is not emerging it’s proliferating
The official religion of Brazil is not just samba but macumba and umbanda, tarantella and churrasco
Candomblé is the Brazil wood of world philosophy
Brazil is Fred & Ginger Flying Down to Rio with Dolores Del Rio
Under the veneer of its vivacity, Brazil is violent, a vile viper playing a violet viola.
In Brazil, anything goes for a chance, for a price, for a piece, for a dance, for a fight, for a night; jeitinho brasileiro is born free but everywhere in chains
Brazil’s face never shows its heart even when they are identical
Brazil stars Bob Hoskins, Jonathan Pryce, and Robert DeNiro
Brazil was written by Terry Gilliam and Tom Stoppard
Brazil is concrete and syncretic
Brazil is impenetrable and forgiving
Brazil is cannibalizing and carnivallizing
Brazil is a baroque barcarolle with a bossa nova beat
Brazil’s Lula is a little loco, but not as loco as Lucy
On Ipanema beach, at the very moment when dusk turns to night, you can hear Orpheus singing for Eurydice; he sings an elegy called Brazil
In Brazil, the real is the only currency that counts

(with Charles Bernstein)









Entrevista de Régis Bonvicino à revista Teresa

Teresa. Como você pensa a relação entre o tempo literário e o tempo histórico?
RB. O tempo literário deve durar mais do que o tempo histórico, caso contrário não chega a se configurar como literário, haja vista – como exemplos de contemporâneos que foram bem-sucedidos em suas épocas e permaneceram – Camilo Pessanha, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Murilo Mendes e outros. No entanto, sem o tempo presente, não há poesia, mas algo inominável chamado de poesia. O poeta que não enfrenta as dificuldades do contemporâneo ou seu tempo histórico acaba por mimetizar o contemporâneo de ontem – o que ocorre à farta na poesia brasileira atual. Ela poderia perfeitamente não existir! Sua inutilidade e/ou desnecessidade advém desse epigonismo: o contemporâneo de ontem e anteontem, dos modernismos, concretismos, surrealismos, popismos, caetanismos, por meio da Tropicália, etc. etc. etc. Certa vez Drummond disse que havia se cansado de ser moderno e queria ser eterno. O equilíbrio entre tempo histórico e tempo literário torna um autor eterno e moderno na acepção de contemporâneo: “O novo que permanece novo”. Pessoalmente, se tivesse de escolher, sob riscos, ficaria com o tempo histórico, porque só ele me permite a invenção, e não a mera dedução de uma poesia imitada do “literário”.

Teresa. Quais procedimentos sua obra adota diante de um mundo em que predominam a ação econômica e a espetacularização da arte?
RB. Adoto os procedimentos da crítica, de ser crítico ante a economia e a espetacularização da arte; adoto também técnicas de contraste, de violência. Aliás, retomando, o inominável que se chama de poesia ora produzida no Brasil, esse inominável é pouco crítico e bastante fâmulo. Ele, esse monstro chamado poesia brasileira atual, mimetiza, às avessas, a espetacularização da arte: muita auto-promoção e nenhuma criação e/ou invenção, isto é, sem sentido crítico. Andy Warhol acertou: os artistas preferem a fama à lama.

Teresa. Qual reflexão sua obra produz sobre a tradição literária brasileira?
RB. Por uma questão ética, não me permito falar sobre meu próprio trabalho. Prefiro remeter os leitores de Teresa a meu website, , onde poderão encontrar alguns escritos alheios sobre o que produzo, e igualmente prefiro falar por meio do poema “Prosa”, que ora envio como parte da resposta.

Teresa. Como você pensa a forma literária?
RB. A partir de um diálogo entre a tradição literária e o agora, num confronto violento entre eles. O que produzo é muitíssimo diferente do que João Cabral produziu, mas sinto-me próximo dele, em todos os aspectos (menos na grandeza); não falo de mim em meus poemas. E dou importância ao acabamento formal de um poema. Se fosse um poeta norte-americano, gostaria de ter sido um objetivista (William Carlos Williams, George Oppen sobretudo). Dou importância para a linguagem e procuro juntar conteúdos à forma, mensagens às formas.


Prosa
Régis Bonvicino

Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras, sóis às avessas, não se vende como prosa, só como história ou arremedo de poema, não se vende como ferro-velho, pedaços de mangueira de um jardim, tambores de óleo queimado, sequer um pintassilgo, cantando no aterro de lixo ou a língua negra dos esgotos, que floresce algas, não se vende como grafite, não se vende como foto, vídeo ou filme de arte, não se vende como réplica ou post card, mau negociante de inutilidades, me tenha impregnado da praga das palavras









Régis Bonvicino nació en la ciudad de São Paulo, el 25 de febrero de 1955. Se graduó en Derecho en la Universidad de São Paulo en 1978. Trabajó como articulista del diario Folha de S. Paulo y de otros vehículos, hasta ingresar en la magistratura, en 1990. Desde 1992 está casado con la psicoanalista Darly Menconi y tiene tres hijos: João, 27, Marcelo Flores, 20, y Bruna, 14.
Sus tres primeros libros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) y Sósia da cópia (1983) fueron ediciones de autor. Hoy se encuentran reunidos en el volumen Primeiro tempo (Perspectiva, 1995).
Entre sus participaciones en lecturas de poesía se destaca su presencia en Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhaguen (1993); y en la III Bienal Internacional de Poetas en
Val-de-Marne (1995). En París, realizó lecturas en la Maison de L´Amérique Latine, y en Marsella, en el Centro Internacional de Poesía. Las lecturas se extendieron a Berkeley (1996), con Michael Palmer, y a San Francisco State University. En 1998, se presentó junto a Charles Bernstein en el Segue Performance Foundation, de Nueva York. En 1999 estuvo en Santiago de Compostela, en la Universidad de Santiago. Realizó lecturas en Chicago y en Iowa City (2000), con Michael Palmer; participó del IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Se destaca además su participación en la Feria del Libro de la Ciudad de México (2004). Su trabajo está traducido al inglés, español, francés, chino, catalán, finés y danés.
Entre 1975 y 1983, dirigió las revistas de poesía Qorpo Estranho – con tres números –, Poesia em Greve y Muda. En 2001 fundó la revista Sibila (), que codirige junto a Charles Bernstein e Idalia Morejón. Actualmente es publicada por la Editorial Martins Fontes.
Sus más recientes libros son Página órfã, poemas, 2007, y Um Barco Remenda o Mar/ Dez poetas chineses contemporâneos, 2007, coeditado con el poeta chino Yao Feng, ambos por Martins Fontes.



*
* *
Bibliografia

Poesía
Bicho papel. São Paulo, Edições Greve, 1975.
Régis Hotel. São Paulo, Edições Greve, 1978.
Sósia da cópia. São Paulo, Max Limonad, 1983.
Más companhias. São Paulo, Olavobrás, 1987.
33 poemas. São Paulo, Iluminuras, 1990.
Outros poemas. São Paulo, Iluminuras, 1993.
Ossos de borboleta. São Paulo, Editora 34, 1996.
Céu-eclipse. São Paulo, Editora 34, 1999.
Remorso do cosmos, Ateliê Editorial, 2003.

Plaquettes
Me transformo ou o filho de Sêmele. Curitiba, Tigre do Espelho, 1999.
Hilo de piedra. Plaquette editada por la revista Sibila; revista de arte, música y literatura, nº 10. Sevilla, oct. 2002 (con poemas de Céu-eclipse y Remorso do cosmos).

Antologías
Primeiro tempo. São Paulo, Perspectiva, 1995 (reunión de los libros Bicho papel, Régis Hotel e Sósia da cópia).
Sky-eclipse: selected poems. Los Angeles, Green Integer, 2000.
Lindero nuevo vedado. Porto, Edições Quasi, 2002 (con poemas de 33 poemas, Outros poemas, Ossos de borboleta e Céu-eclipse).
Poemas (1999-2003), Ciudad de México, Ediciones Alforja/Conaculta/Fonca, 2006.

Poema coletivo
Together – um poema, vozes. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.

Poesía Infantil
Num zoológico de letras. São Paulo, Maltese, 1994.

Crítica
Desbragada (antología y estudio de la poesía de Edgard Braga). São Paulo, Max Limonad, 1985.
Nothing the sun could not explain / 20 contemporary Brazilian poets. Edited by Michael Palmer, Régis Bonvicino and Nelson Ascher. Los Angeles, Sun & Moon Press, 1997.
The PIP anthology of world poetry, volume 3, Nothing the sun could not explain; 20 contemporary Brazilian poets. Edited by Régis Bonvicino, Michael Palmer and Nelson Ascher. Los Angeles, Green Integer, 2003.
Envie meu dicionário (cartas e alguma crítica), com Paulo Leminski. São Paulo, Editora 34, 1999.

Traducción
LAFORGUE, Jules. Litanias da lua. São Paulo, Iluminuras, 1989.
GIRONDO, Oliverio. A pupila do zero. São Paulo, Iluminuras, 1995.
PALMER, Michael. Passagens. Ouro Preto, Gráfica Ouro Preto, 1996.
CREELEY, Robert. A um. São Paulo. Ateliê Editorial, 1997.
BERNSTEIN, C., MESSERLI, D., COLE, N. e BENNETT, G. Duetos. Paranavaí. Editora UEPG, 1997.
MESSERLI, Douglas. Primeiras palavras. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.

Colaboración
Cadenciando-um-ning, um samba para o outro. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001 (con Michael Palmer).

Artes Plásticas
Do grapefruit. São Paulo, Edição dos artistas, 1981. (traducciones de poemas-instrucciones de Yoko Ono, com trabajos gráficos de Regina Silveira y Julio Plaza).

Homepage
http://regisbonvicino.com.br









*
* *

Friday, October 12, 2007

LEANDRO SARMATZ





Barro

No barro escuro,
na noite escura,
na pré-noite de todas as noites escuras
feitas de cinza e merda e gritos.
Na noite silente do gueto.
O cheiro é uma mistura de peixe
e morrinha de roupa negra.

(Esta é uma epopéia subterrânea de cheiros,
pestilências e ocasionais martírios.)

O pão é de centeio,
com ele é possível esculpir figurinhas doentias e encurvadas
pelo frio e pela fome:
fantasmagorias de carne e ortodoxia.

(Do poema Golem, ainda inédito)

Fevereiro de 2001

No holtezinho fuleiro em frente à Gare du Nord nós trepamos pela primeira e última vez.
Era argentina. Vinha de Rosário. Era pequena e miúda como um efebo, a bunda estreita de [efebo, uns pezinhos cor de barro.
A mãe estava pelas redondezas. Circulava com o namorado, outro argentino radicado desde [a última quartelada.

Conheci-o mais tarde, o perfil adunco, ar de quem acompanhou a vida com uma úlcera.
“O mais importante”, disse-me dentro de um café horrendamente decorado com máscaras [do carnaval veneziano e fotos da família de monsieur Faisal, o dono do pedaço,
“é aprender a escutar a úlcera, sua linguagem, sua prosódia, seus apelos tão particulares.”
“A úlcera dialoga, a úlcera fala conosco em sua linguagem entranhada.”
“Esqueça Dujardin, esqueça Joyce”
(era um literato),
“A verdadeira voz aqui dentro é a ardência dela.”
E percutia os nodosos dedos na altura do diafragma.

“Uma vez estive com Borges”, sorria.
“Há um clichê terrível nessa afirmação: qualquer um
que escreveu naquele país entre 1938, digamos, e 1986, esteve alguma vez com Borges.”

(E quando dizia “naquele país” eu já sabia que isso significava a Argentina,
nome nunca proferido, Adonai de exilado.)
“El viejo era generoso e fraco como uma putinha bexiguenta.”
“Foi por volta de 64, ele havia publicado El otro, el mismo”.

Ficou então alguns segundos em silêncio.
“Você o leu?”
É claro que eu tinha lido.
“Tem aquele poema sobre o golem, lembra?”
“Um poema magnífico, musical, arcano como tudo o que ele perpetrou.”
“Mas é um poema tremendamente equivocado. Completamente equivocado.”
Desfrutou um pouco do efeito da surpresa.
“Borges lia muito, mas, às vezes, lia meio atravessado,
aquela leitura diagonal e apressada que nós, que já fomos
estudantes diligentes, sabemos direitinho como é.”
Piscava então o olhinho com um ar matreiro.

“Borges descobrira Scholem, lera-o algumas páginas,
estava absolutamente fascinado pela mescla de erudição
e crença genuína.”
“Scholem lhe deve ter parecido um antídoto para o golem
deturpado de Meyrink, o famoso episódio sobre a leitura de Der Golem
nos anos imaturos de Genebra.”
“Mas El viejo tinha um gosto por aqueles filmes de monstro dos estúdios Universal.”
Tomava um último gole de café, alheio à úlcera e à realidade.

Escurecia e começava a chover. Era fevereiro na Europa,
Paris era Paris: mas também era apenas de onde falávamos da terra
vazia e sem memória, pampa com Alzheimer..
“Releia o poema”, dizia com um ar professoral
que combinava
com seu suave desalento de exilado.
“Tem um pouco de Boris Karlof.”
“Releia-o.”Prometi.

“A legenda do golem é o anti-gótico: é um último apelo à metafísica
em um mundo regido pela estética”.
Tentava organizar a massa crespa de cabelos desgrenhados.
“Borges transformou-a em artifício expressionista,
repetindo, já velho, o estudantezinho míope de Genebra.”
“Um verdadeiro golem não se parece com um Frankestein do gueto.”

E dando por encerrada a conversa, pagou a nossa conta e seguiu rumo ao metrô.
Reparei então como andava encurvado, como em luto.

(Do poema Golem, ainda inédito)


À espera do canto

I
Morena, você canta para mim
É para mim que você canta?

O marinheiro só
na praia escura.
Na rua do fim da rua,
o marinheiro só.

Tão longa espera, à noite. Em densa
vaga, tateamos à procura
de um significado. Homens à prova d´água,
portas à prova de fogo. Há uma fuga
resignada, mais passeio para o nada
do que a própria fuga.
Em nossas águas nadam peixes, neurônios, amnésias.

Penso na realidade, jogo o jornal para bem longe.
Sou síntese do quê? De mim antes ou depois?
De nunca eu mesmo?
Sou síntese?

II
Ulisses, tão mouco a navegar,
tapou os ouvidos com pegajosa e fresca
cera. Também fez-se amarrar ao mastro,
entre sorrisos e amavios:
quis capturar e ser capturado,
quis brilhar ao contemplar o brilho,
folhear a nudez obscura, os papéis, os contratos, as palavras cruzadas, o salmo, os verbetes,
[o reclame, o epitáfio, a canção, o enunciado, o poema.

Orfeu, teu canto resignado
após as cinzas é sucedâneo
cruel, sem compaixão,
do estribilho de outro canto
opaco; triste e sentido
que entoamos, papalvos, embriagados
de nós mesmos a cada noite,
a cada tic-tac do relógio,
do coração,
do sexo.
Moldado em barro,
murmúrio e disparate.

III
Numa noite distante no tempo e no espaço,
numa noite no Leste,
madrugada na casa paterna:
deu um clique na cabeça
e a história fez-se história
e trouxe a sentença irrevogável.

Manhã, as pernas dormentes
não sustentam o esqueleto
humano, essa triste armadura de pó sob as carnes
frescas a transpirar por essa pele
debaixo do tecido dos andrajos.
Difícil levantar numa hora dessas.
IV
O marinheiro só
na praia escura.
Na rua do fim da rua,
o marinheiro só.

O marinheiro só
escuta a sirene
ao longe, na avenida.
O marinheiro só.

É doce morrer no mar,
no sal amargo da margem.
A imagem mais real
é essa que não levamos.

Diga a ela que eu não vou
partir de manhãzinha:
vou à noite, que convém.
Diga a ela que eu não vou.

V
A sereia pega no batente às 11 horas
da manhã. Chega fresca, os cabelos
molhados. Vem da cidade nova.
A sereia pinga aqui e ali a gota acre
do sangue ultramarino, odor de tempos
em que ainda não se contava o tempo,
não havia sol nem norte:
só abismos, ações e mistérios.

Diz-me, sereia,
se há lá fora,
além do limite
das janelas,
uma vida real
ou se é miragem
o mundo anunciado
pelas chuvas?


Ouço teu canto
revérbero que
bolina meu ouvido,
esse teu canto
sem música:
clarim do dia
à espreita
daquilo que perdemos:

um corpo material
e outro corpo, fluído,
que corre contra
a maré; não mais
corpo nem matéria,
não mais coxas, bocas,
seios. Divisão.

(Como em espetáculo circense, em que a serra cenográfica e as caixas coloridas
simulam destroçar as partes de cima e de baixo enquanto o público, tenso,
respira aos goles o horror antevisto da repartição e goza antes o mistério
do corpo unificado, assim teu corpo é cindido de mim e do meu gozo, gesto e refração
no espelho aquático: correm rios, mares, poças.)

VI
Lá do fim da arrebentação
onde a voz agora abafada
traga meu corpo e seus segredos
busca meu ser estremado
sem partes reconhecíveis
nem resquício de forma
feição ou precisa estrutura
vejo um gesto solto no espaço
não sei se me chama ou se vem
tampouco se entendo o que vou.





Biografia

Nasci em 1973, em Porto Alegre. Vivo em São Paulo desde 2001. Sou jornalista e dramaturgo.


Poética

Minha família falava iídiche. Eu não falo iídiche.Mas tenho a memória: ela me serve como um idioma.