Saturday, December 22, 2007


MÔNICA DE AQUINO



mencionada por:Sérgio Alcides
Lígia Dabul
Ana Elisa Ribeiro

menciona a:
Flávia Rocha
Micheliny Verunsck
Adriano Menezes
Valéria Tarelho
Leonardo Martinelli


poemas:

Ser mínima.

Cortar cabelo
unha pele
mas sem o cálculo da cutícula.

Despir-me de tudo
o que não dói.

Ultrapassar toda a carne
e roer osso –
canina –
roer o rabo.

Roer, ainda,
os próprios dentes
agudos
rentes







A noite
liberta sombras
e seu passeio invisível.

Estrelas adormecidas
cintilam um desfile
lasso.

A lua
irônica ri
com seu escalpo roubado.

A noite é dela
o céu é dela
sua luz falsa
brilha
e arde.








A um átimo
do amo-te
temo-te.

A um istmo
do íntimo
mente.

De cor, somente
o silêncio
(continente).

E a linguagem,
cortejo
(périplo).

Mas o amor:
arquipélago.






Mônica de Aquino nasceu em Belo Horizonte, em 1979.
Sístole, seu primeiro livro, foi lançado em junho de 2005 pela editora carioca Bem-te-vi, e faz parte da coleção Canto do Bem-te-vi. No mesmo ano, foi convidada para integrar a antologia O Achamento de Portugal, organizada pelo poeta Wilmar Silva e publicada pela Anome em parceria com a Fundação Camões. Participou, também, da antologia catalã Panamericana, poetas americanas nascidas a partir de 1976, organizada pelo poeta espanhol Joan Navarro e publicada na revista eletrônica sèrieAlfa em 2006.
Já teve poemas publicados em páginas eletrônicas do Brasil e do exterior e em periódicos como o Suplemento Literário de Minas Gerais e a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional.
Mônica de Aquino participou de vários eventos apresentando seus poemas, dentre eles o Terças Poéticas, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, a Primavera dos Livros em São Paulo e a Feira do Livro de Porto Alegre.




Poética

A poesia nasce de um olhar inaugural que se adensa e pulsa na linguagem. É o processo alquímico de comunhão com os nossos espantos. Este encantamento é tecido por ritmos e imagens, por metáforas que revelam e transformam as experiências, metamorfoseando os sentidos, que trocam de pele ao desvelar sua natureza primitiva e múltipla.
Cito Octavio Paz, retomando uma frase de Valéry: “Em algum lugar Valéry disse que o poema é o desenvolvimento de uma exclamação. Entre desenvolvimento e exclamação há uma tensão contraditória; eu acrescentaria que essa tensão é o poema”.

Saturday, December 15, 2007

FLÁVIA NASCIMENTO FALLEIROS



mencionada por:Marcos Siscar

menciona a:Marcos Siscar
Marília Garcia
Carlito Azevedo



poemas:



BREVE POÉTICA

Todo e qualquer know how poético é absolutamente intransferível. Captar realidades dormentes, mas em conformidade com as reverberações que emanam de um abismo indescritível – ponto em que nos sabemos ser a confluência de pelo menos dois: um Eu mais Outro. Estes não raro se caleidoscopizam no momento poema. Não há momentos poéticos. Há poemas e há momentos que os são. A matéria infinita concentra-se sobretudo no amargor de um cadinho que destila quase todo o terror do mundo: solidão suprema, conselho do silêncio. Quem todo este terror ama – amargo poema solidão caleidoscópica poesia – tem também medos, mas outros. Assemelham-se à sensação que todos temos de querer eternizar certos instantes e nos sabermos impotentes. Assemelham-se ao desejo de fazer com que a pequena morte não tenha mais duração, que rompa o tempo permanecendo enfim, suprimindo a noção duração. Medo de morte porque a única coisa que se sabe eterna é a própria. Morte dos corpos, morte dos poemas, morte das cidades, morte das canções: a morte é eterna, portal supremo, por tal razão é que se a quer quem quer poemas, quem quer de breves fazer infinitos, quem quer olhos retesados diante de quadros tão efêmeros e os tem e os fixa brevemente na eternidade para depois nela morrer.








ENGARRAFAMENTO
Com nós na garganta vejo a fila desses carros parados, antigos amigos me ligam, cobram poemas e sonhos, mal sabem que velhas canções cafonas soam no meu FM. Com o tempo fui ficando piegas. Eles me contam antigos amores, antigas cantilenas, antigos amores. O órgão coração me dói. Velhas cidades me sufocam, não avisto a linha do horizonte como na América do sul, as novas, de lá, jamais permaneceriam em mim. Resta um jorro incrédulo através de minhas pupilas vítreas, por sobre a cidade, cemitério ancião contemporâneo.











POEMA DÚBIO


Misturar latim com futebol – eis onde reside a verdadeira dificuldade. Misturar dúvidas com dívidas, metafísica com baby-beefs Rubayat – eis aí o meu calcanhar de Aquiles. Viver neste mundo como vivo e viver em outro mundo o meu espírito onde a matéria mais etérea impera. Eu aqui – eu e meu outro lobo. Metafísica com futebol, latim com dívidas, dúvidas com beefs. Nesta tempestuosa noite oceânica o único farol de sentinela é o brilho dos olhos do lobo indomável – este habitante da planície Alma que traga os ventos que sopram os mares que trazem as chuvas que fecundam as terras em que germinam as sementes feitas plantas enquanto os homens matam sua sede de homosapienscianimalidade. No princípio era o Caos, inaudível desordem que cedeu lugar à afinação dos instrumentos cósmicos: os decibéis fizeram-se ouvir, os decibéis da orquestra humana aumentaram desencadeando explosões genocidas. Depois um fechar de olhos. Silêncio. Afinal, funde-se tudo no todo do abismo mais profundo – o abismo que eu perscruto enquanto navego neste oceano que existir é.





POEMETO

Sonetos de Camões às voltas com seus fogos, artifícios de amar às soltas. Do corpo sai dirigida a energia perdida que se extravia na chuva noctívaga incorrigível a secar as chamas que não se vêem, a sepultar extensamente a distância que ilha cada um. Não se vêem tais labaredas. Somente ilhéus. Rochedos. Cadeiras vazias.


(Publicados na Revista Inimigo Rumor n° 17, RJ/Portugal. 2005.)





Dados biográficos:

Flávia Nascimento Falleiros é pesquisadora em Ciências da literatura, e publicou vários ensaios sobre as literaturas francesa, portuguesa e brasileira. Também é tradutora literária. Publicou ainda poemas e prosas nas revistas: Inimigo Rumor (n° 17), Germina, Escritoras Suicidas e Cronópios (essas três últimas, eletrônicas). É doutora em Literatura francesa pela Universidade de Paris X (defendeu uma tese de doutorado sobre o mito literário de Paris: Paris dans la littérature française des années vingt. Contribution à l’histoire de la représentation, Lille, ANRT, 1998, 483 p.). Prepara atualmente um ensaio sobre o escritor francês Julien Gracq.






Uma possível poética:


Tentativa (muito pessoal) de um caminho do meio : entre os atos do intelecto e o suposto encanto arcaico, misterioso e oculto da língua.
Não serve pra nada. E nem acho que deva.





Friday, December 07, 2007

ANGELA MELIM



mencionada por:Laura Erber
Adolfo Montejo Navas
Italo Moriconi

menciona a:Elisabeth Veiga
Leonardo Fróes
Cecília Meireles
Manuel Bandeira
Carlos Drummond
João Cabral






Três poemas:


FLORES
Colho olhos fixos
de novo
boca seca
aberta
- o não completo me suspende
entre parênteses invisíveis e impotentes
no ar parado -
de passeio neste campo imperceptível
minado
que a pasma semântica do absurdo
colore de avesso e espanto,
flores que explodem ao contrário.

1999



CLOWNS
Será triste a passagem
para a Terra Sem Sentimentos
do capital total.
Um por um
pelo desfiladeiro
como os mocinhos do cinema.
Fardos, jegues.
Camelos?
Também, vindos de outros filmes.
Turbantes, sarongues, sáris.
Irmão, primo.
Pai.
Até mãe pelo despenhadeiro.
Nada sobrará.
Amor, sorriso.
Pedra sobre pedra.
Só frieza e névoa.
Não, não será triste.
É Sem Sentimentos a Terra
do capital fatal.
Ovelha irreal
simulacro de gemido
inteligência transgênica.
Clowns, clones - será gente
o que desce da garganta
do outro lado da montanha
da transmutação global?

15 de setembro de 2000






Meu pai nos abandonou.
Minha mãe casou e mudou.
Vovó morreu.
Os irmãos sumiram no mundo
ou submundo.
Sem explicação
Yvonne nunca mais falou comigo
e, para Ronaldo,
sou fantasma do passado.
Vejo meus filhos já voando.
Nem um pássaro na mão.

2 de outubro de 2000


Do livro Possibilidades, Rio de Janeiro, agosto de 2006






Biobibliografia
Angela Melim nasceu em Porto Alegre em 1952 e mora no Rio de Janeiro, onde é escritora e trabalha como redatora, tradutora e intérprete de conferências. Publicou diversos livros, tendo sido premiada pela Fundação Vitae e UBE – União Brasileira de Escritores. Escreveu para diversas revistas e jornais, tomou parte em debates, programas de TV, filmes e mesas redondas sobre poesia e literatura. Coordenou núcleos de Cultura para o Partido dos Trabalhadores, participou dos sindicatos dos Tradutores e Escritores, da UBE e da CUT (Central Única dos Trabalhadores).

Livros publicados:
- O vidro o nome (1974) poemas
- Das tripas coração (1978) poemas
- As mulheres gostam muito (1979) prosa poética
- Vale o escrito (1981) poemas
- Os caminhos do Conhecer (1981) poemas
- O outro retrato (1982) prosa poética – manuscrito circulante
- Poemas (1987)
- Mais dia menos dia (1996) obra reunida
- Possibilidades (2006) poemas

Inéditos:- Ainda ontem - contos, Prêmio Eneida da UBE-RJ, 1991
- O personagem - em elaboração (Bolsa Vitae, 2005)
- O elefante triste infantil (no prelo)
- O pinheirinho de Natal infantil (no prelo)
- Monstrinho infantil (no prelo)
- Aniversário infantil (no prelo)







Uma poética


COISAS ASSIM PARDAS

Para Eduardo


Canário-da-terra, marreco, chinfrim
coisas assim, nomes – Rita
coisas assim pardas, mestiças
de pequeno porte
coisas de fibra
embora os jeitos desvalidos
coisas pardas vivas
pulsantes
um poema assim.


Do livro Das tripas coração, Florianópolis, 1978

GUILHERME ZARVOS



mencionado por:Michel Melamed
Italo Moriconi
Camila do Valle

menciona a:Ericson Pires
Flávio Amoreira
Márcio-André
Botika
Laurent Gabriel
Rod Bitto



poemas:




Verde
Se eu morrer amanhã que se salve a poesia ou que me salve a poesia e não estarei morto amanhã. Minha voz e as letras - como é preciso o encaixe das palavras – que dão sentido e, na busca, o encontro do que é estético ético do que é sintonia. Não vaguei neste mundo besta à toa, se bem que é bom vadiar. Vadiei. Se na volta da mesa toalha de cânhamo e vaso deixei vagar pensamentos e cheiro e sabor: como gosto de você. E procurei ajudar outros vadios, em precisão maior que a minha, pois há retorno na camaradagem. Sou de um grupo de semente vândala, de esparramante coração. Assumido vagabundo. Sinto falta de você. E lá se vão anos e gente de todas as vidas. Vi venderem a peso de ouro copeques sem valor. Fui passado para trás com um sorriso vago. Era vantagem. Vendo o sorriso vago de quem vendia. Não sou vítima. E cada disso com sentido: eu amo ser humano que se aventura...contudo vem agora canseira do vago, ventrílocos, vociferação. Já sinto sono no meio da volta. Este teatro eu vi ontem. E não que valha apenas o versado. Mas vai chegando a velhice e devagar cedo ao vigor do vento. Continuo amando o que é verde...ver-te vou indo ver.








Henrique
Ele era branco. A camada de tinta
sobre a tela. A primeira segunda cama-
das de tinta brancas sobre a tela. intacta.
Ele era branco. O rosto pretensiosamente
masculino. Francês pernas finas com mús-
culos de corrida. O short e a camisa brancos.
Olhei me olhou. Tantas vezes. O número
que supera desculpe-me, ou você está me
olhando porquê. Ele era francês perdido no
vagão do metrô. Eu sou do Rio. Cada um
media a liberdade e o espaço. Foram poucas
palavras. Não era de palavras. Sem retórica. Eu
não falo francês. Seu olhar pretensioso aborrecia-me.
O corpo muito belo. Quase todos os machos sabem
que os rapazes atraem certos homens. Poucos
são inocentes. As mães nunca são inocentes. Os
pais raramente são inocentes. Os adultos poucas
vezes não sabem que rapazes atraem muitos
homens. Isso é repugnante! Os homens riem dos
homens que deixam transparecer atração por rapazes.
O francês era belo. O buço do francês era belo.
Os poucos pelos da coxa do francês de pernas finas
e musculosas eram belos. Ele me olhava. Olhava para ele.



Deitou na minha cama sem palavras. Seu
corpo era magro e musculoso. Entumecido o
membro era pequeno. aparentava fragilidade. En-
volto em pelos finos como seu cabelo seus ombros
seus músculos. Branco foi a imagem que
restou. O ventre branco espargido de esperma
que escorria ou gotejava aqui acolá - o quadro
final: o silêncio do branco e o cheiro de homem
que enjoa ou agrada a muitos homens - quadro
insólito. O francês vestiu a camiseta e o calção
brancos e apertou minha mão. Saiu em silêncio e
o cheiro que impregnava foi pela janela. Como são
brancas as nuvens!











Brasília

Voando ver sobre as asas de
Lúcio seguindo sua coluna vertebral
Tocando teclas nódulos e assistindo
Para além das asas as irmãs Guará e
Tabatinga. Vô vi vi Brasília brincando
De amar. Há tantos: o lutador gentil como
Um pequeno urso acariciado pela mãe
Protegendo e protegido seu amigo
Parelha o desavergonhado Fashion
Vô vi ver Fashion a estátua do belo
Magérrimo levantando seu braço
Raio Flach Gordon apontando estrela
E seu corpo manequim e seu braço
Manequim e seu dedo manequim
Esticando-se pois mais que estrelas
Apontava o limite do corpo heróico
Já que alguém o afrontava e seu corpo
Impinado desafiava como a solidez
De obra do Oscar ou de uma pena de
Ema todos seres do cerrado
Vô e na sala de aula modernosa USP
Ou PUC tanto faz fala-se do
Moderno Autoritário de Brasília
Vô a Brasília de Jucelino de Oscar
De Lúcio e de Darcy vô pelas Super
Quadras no entardecer de um inverno
E me sento com o Denílson na UNB e
O pequeno urso o inseparável Faschion
E seus mais sete ou nove amigoas
Que andam soltos flor do cerrado
Porém não tão soltos que possam soltar o
Celular de cada progenitora e vejo a igreja e
Vejo os santos e os vitrais, tudo flutua e
Sigo para outro caminho
Da procura que o dedo determina.




bio / biblio:
Guilherme Zarvos nasceu em São Paulo em 1957 e vive desde os dois anos no Rio de Janeiro. Formou-se em Economia PUC-1980, fez mestrado em Ciências Sociais IFCS-UFRJ -1989 e é doutorando em Letra, PUC-RJ. De 83-87 trabalhou com Darcy Ribeiro no Programa Especial de Educação. Foi viajante mochileiro por dezenas de países.

Em 1990, fundou com outros poetas o CEP 20.000 – Centro de Experimentação Poética do Rio de Janeiro, sendo ainda hoje, 2007, um dos organizadores.

Escritor, professor, editor, diretor de teatro e participante de grupos de poesia falada, produtor cultural, publicou seis livros, de 1990 até agora, passando pela poesia e prosa. Zombar, 2004, é seu livro mais novo.




poetica:

Poesia- Mais do que gênero a forma de ver e ouvir e a história e a descoberta e o deixar chegar.Unté, Já vou let ar.


Saturday, December 01, 2007

ADALBERTO MÜLLER



mencionado por:Ricardo Pedrosa Alves
Marcos Siscar

menciona a:(5 bons poetas que não achei na lista)
Fernando Paixão
Maria Lúcia dal Farra
Mário Domingues
Ricardo S. Carvalho
Carlos Loria



poemas:



ENQUANTO VELO TEU SONO



Perception of an object costs
Precise de object’s loss.
Emily Dickinson


I
No silêncio da noite
em vigília de insônia
velo teu corpo
e o admiro
como ao copo translúcido
ao lado de tua cabeça.


II
Teu corpo deitado na cama
tem a mesma inquietude do copo,
a inquietude da água desse copo
pronta a derramar-se
como teus cabelos sobre o lençol;
a mesma inquietude
pela sede que evoca.


III
Um copo translúcido e calmo
que perturba o cristalino.
Um corpo de água
todo espraiado
entre os lençóis de água
de que é feito o branco da cama
a derramar em dobras dentro
dos limites do leito.




IV
Um corpo cheio até a boca
entre lençóis de água.


V
A cama
toda se alagando
entra por meus olhos cheios
do líquido que derramam
teus cabelos.








O VINHO DE LETHES




Pousa uma vez mais
em tuas mãos


a taça


é tempo, é tempo
de beber
o vinho do esquecimento


recolhe as rosas
murchas no vaso
e as pétalas
que amarelam sobre a toalha de renda
solta os cavalos
no carrossel da memória.


é tempo, é tempo
de lançar ao mar
as cinzas
de estancar com lenço
da seda mais alva
as primeiras gotas da tempestade.












NAVEGAÇÃO


Bombordo
aroma
de rosas
azuis


Estibordo
o corpo
suspira
espiral


Acima
o lume
do teu olho
em mar escuro
o leme
do teu olho


astro-
lábios.
















Trecho de uma resposta a uma enquete da Revista Eletrônica Zunái (É possível conciliar experimentação formal e lirismo na criação poética?)

...Mas felizmente tivemos também um Manuel Bandeira, em cuja poesia o lirismo ressurge no que ele tem de primordial, de grego, mesmo: a associação entre o canto e o mundo dos afetos. Não nos esqueçamos que a origem do lirismo é grega, e tem a ver com o fato de Orfeu ter feito uma lira com suas tripas, para resgatar sua amada Eurídice do inferno. Estamos marcados por esse gesto, ainda que seja um mito. É verdade, porém, que, entre os jovens poetas, os temas tipicamente líricos não estejam muito na ordem do dia. Aos jovens poetas, interessa mais a anotação das sensações, mais que dos sentimentos. E mesmo os sentimentos, no mundo pós-moderno, se modificaram, sobretudo com a diversificação sexual. De minha parte, acredito que lidar com temas líricos como o amor (e suas adjacências), não significa abrir mão da experimentação. Meu mentor, nesse caso, é o poeta que, a meu ver, melhor soube conciliar os temas clássicos do lirismo com a experimentação estética mais ousada da poesia moderna: E.E.Cummings. Gosto de escrever sobre temas que deveriam ser expressos em elegias, odes ou epitalâmios, mas submentendo-os a uma nova configuração verbal e gráfica. Em suma, acredito que os grandes temas líricos, na mesmo medida em que ganham novas formas de expressão, vão também influenciando a formação de novas experiências e experimentações. Pois o amor, que é a base e o fundamento do gesto órfico da poesia, não é uma experimentação – e o que é mais – estética?




Adalberto Müller nasceu em Ponta Porã (MT/MS) em 1966. Publicou Ex Officio (Paris, 1995) e Enquanto velo teu sono (7 Letras, 2003), além de traduções de Francis Ponge (O partido das coisas – Iluminuras – A mimosa – Ed. UnB), Paul Celan (revistas Zunái, Oroboro)e de E.E.cummings (O Tigre de Veludo - Editora UnB, coleção Poetas do Mundo). Organizou o livro de ensaios de Benedito Nunes João Cabral: A máquina do poema (Ed. da UnB, 2007). Organizou e coordenou, com Graça Ramos, o Festival de Poesia de Goyaz, em 2006. É professor de literatura e cinema na UnB, e dirigiu (com Ricardo Carvalho) o curta-metragem (35mm) Wenceslau e a árvore do gramofone, baseado em textos de Manoel de Barros (em finalização).

blog: www.cordeldigital.blogspot.com








Saturday, November 24, 2007

FREDERICO BARBOSA





mencionado por:
Ricardo Aleixo
Greta Benitez
Claudio Daniel
Rodrigo de Souza Leão
Virna Teixeira


menciona a:
Onze poetas que ainda não estão no site:
Alice Ruiz
Antonio Risério
Amador Ribeiro Neto
Lau Siqueira
Valéria Tarelho
Micheliny Verunschk
Gabriela Marcondes
Gabriel Pedrosa
Rica P
Donny Correia
Eduardo Lacerda





poemas:



Desexistir

Quando eu desisti
de me matar
já era tarde.

Desexistir
já era um hábito.

Já disparara
a auto-bala:
cobra cega se comendo
como quem cava
a própria vala.

Já me queimara.

Pontes, estradas,
memórias, cartas,
toda saída dinamitada.

Quando eu desisti
não tinha volta.

Passara do ponto,
já não era mais
a hora exata.

(in Contracorrente, São Paulo, Iluminuras, 2000)


Memória se

A mais íntima
memória se
desdobra cega
e surda:

A presença tátil
de suas dobras
incrustadas
nas marcas linhas
das minhas mãos.

O gosto redondo
do seu corpo
na retina língua
do meu gesto
ou rosto.

E seu perfume
rio riso colorido
escorrendo
sobre o corpo
sopro e calor.

Memória se
deseja. O resto,
se ouça ou veja.

(in Contracorrente, São Paulo, Iluminuras, 2000)





Rua da Moeda
tapa na cara dos reaças

enquanto
o poeta reaça
na lagoa
(maranhense) carioca
realça a garça
e condena o rock

lá em recife
a turma dança
de negro (fear of the dark)
e canta contra

(quanto mofo
gullar/tinhorão
surdo ao novo
patronos do pagode
banal)

tapa na cara dos reaças:

rua da moeda
dos punks do heavy
do soco socorro
metal pernambuco
contra a paralisia mental


enquanto
um passadista
síntese da direita
do preconceito
da retro seita
brada armorial

na rua da moeda
camisetas negras
mimetizam arrecifes
contra a onda
do fácil fascio
o burro coro coreto
nacional-popular

(quanto mofo
intolerância tola
implicância ditadura
na voz do velho
ariano feito dogma
preconceito feito god)

tapa na cara dos reaças:

rua da moeda
onde rock faz mais sentido
ácido pesado e divertido
contra a nação mesmice
um louco pernambuco dadá


(in Invenção Recife – Coletânea Poética 2, Recife, Fundação de Cultura, 2004)


bio/biblio:
Frederico Barbosa - Poeta e professor de literatura, nasceu em Recife, em 1961, e mora em São Paulo desde a infância. Publicou os livros de poesia Rarefato (Iluminuras, 1990), Nada Feito Nada (Perspectiva, 1993), que ganhou o Prêmio Jabuti, Contracorrente (Iluminuras, 2000), Louco no Oco sem Beiras (Ateliê, 2001), Cantar de Amor entre os Escombros (Landy, 2002), A Consciência do Zero (Lamparina, 2004) e Brasibraseiro (Landy, 2004), em parceria com Antonio Risério, pelo qual recebeu seu segundo Prêmio Jabuti.
Pela Landy Editora, para a qual dirige a Coleção Alguidar, publicou a coletânea Cinco Séculos de Poesia (2000), a seleção de sermões de Antônio Vieira, O Sermão do Bom Ladrão e outros sermões (2000), a edição comentada, em parceria com Sylmara Beletti, dos episódios camonianos Inês de Castro e O Velho do Restelo (2001) e, com Claudio Daniel, a antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil (2002). Organizou também os volumes Clássicos da Poesia Brasileira, Poemas Escolhidos de Fernando Pessoa, Os Sonetos de Camões e Contos Escolhidos de Artur Azevedo, para a Editora Klick.
Dirige, desde a sua inauguração em 2004, o Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura – Casa das Rosas e é curador da primeira biblioteca temática de poesia do país, a Alceu Amoroso Lima, inaugurada em 2006 pela Prefeitura de São Paulo.
Seus poemas podem ser lidos em
http://fredbar.sites.uol.com.br






poética:



O P.S.

1.
em terra de profetas
quem se cala
é o poeta

2.
porque houve auschwitz
porque o caos é aqui

porque a palavra consola
porque há tantos brasis
porque arte é ordem
escrevo e sou gris

3.
entre a expressão
(banal)
e a invenção
(genial)

fico com a impressão

invento
no leitor
a expressão
do meu horror

imprima-se



(in Louco no oco sem beiras, São Paulo, Ateliê, 2001)



Três fragmentos de uma entrevista a Claudio Daniel

· Já que pouco podemos fazer para minimizar o caos do mundo, pelo menos podemos, através da poesia, tentar organizar o nosso horror interior. Alertar e protestar. Encontrar parceiros nessa revolta e dar voz aos que, mesmo a sentindo, nem sempre a conseguem expressar.

· Sempre cri que o que importa mesmo na poesia é a forma. Não a fôrma, prisão, mas a estrutura orgânica do texto. O que importa é como se diz e não o que se diz. Se o que importa é a forma, o vigor da composição, por que não unir à preocupação estrutural a busca de um conteúdo que tenha impacto e fale das coisas que, de fato, preocupam e afligem as pessoas hoje? Já cansei de poetas ditos refinados que fazem uma poesia frouxa, cheia de artifícios e que nada dizem do nosso tempo. Estou certo de que é possível unir a experimentação inventiva e rigorosa dos concretos ao ímpeto de denúncia e protesto dos “engajados” e a o que há de engenhoso e inventivo dos “marginais”. É possível conseguir tudo isso ao mesmo tempo? É a minha busca.

· Inventivo sempre é quem enfrenta de frente os principais problemas da arte no seu tempo. Creio que os principais problemas da poesia brasileira hoje sejam o neoconservadorismo; o abandono da experimentação formal, substituída por fórmulas arcaizantes; a autocomplacência das panelinhas; a quase completa inexistência de uma crítica literária inteligente e estimulante; a falta de comunicação com o público leitor e uma pobreza semântica assustadora (em outras palavras: falta do que dizer). Assim, creio que os poetas que seguem experimentando, com muita autocrítica e exigência, procurando abordar aspectos significativos da vida de hoje, sem receio de buscar um público leitor mais amplo, são aqueles que praticam uma “poesia de invenção”. São apenas esses que me interessam. Como eu já disse algumas vezes, qualidade sem inventividade não é arte, é burocracia, é papo furado, papo de otário. O conceito de “invenção” não foi criado pelas vanguardas, muito menos pela Poesia Concreta, como pensam alguns desinformados. Invenção é tudo na poesia, desde Homero. O resto é conversa para boi dormir, picaretagem.




Saturday, November 10, 2007

MASÉ LEMOS



mencionada por:
Izabela Leal
Marcos Siscar

menciona a:
Carlito Azevedo
Marcos Siscar
Régis Bonvicino
Paula Glenadel
Luiza Leite
Mauro Santa Cecîlia
Paulo Moreira


poemas





Os lados



Os cílios espessos


determinam


as cores


cinco


se voltam


a cada espessura


vários raios


cortam


os fios.








De lado

Os lados desenham diversos fragmentos

naquele vinil do Jimi Hendrix

as notas

embora às vezes aceleradas

lentamente querem alcançar

sem sobreaviso

elas ameaçam sobrepujar a simples canção encadeada.




o exercício das coisas

1- o cortador

acordo. volto à cama e conto todas as pintas do corpo. nada cresceu. ranhuras. o vermelho e o negro são tão cosméticos quanto banhos d’água oxigenada. espumantes. arranho. vontade ditirâmbica de passar merthilolate. arde dói, germicida. vetustos esparadrapos e gazes, complices. [o amor], unhas, lixas, pinças.


2- o creme

durmo. volto ao banheiro permeado de broncos insectos. um para o rosto, um para as pernas, outro para os seios, especial para o contorno. retinol. [azelha]. estrangeiros e peles. grudam, transformam-se em outros tantos. películas. pro sol, pro mar. gosmas em frasqueira empedernida.



3- o abajur

levanto. deito ao lado, mudo. os livros agitados. de um para o outro, pilhas entrecortadas. agir, ação. sentir, distração. sem, dicção. lençóis seiscentas linhas. conto uma a uma. penas de gansos intoxicados. espinheira santa noturna. o fato desenvolvido nunca empregado. seguro datilógrafas em tipografias bastante minúsculas para servirem de criado. [a vida], escovas, pentes, espanadores.


4- confort

a roda rodeada de triângulos, pontas arrendondadas.
circunscrita de arabescos sinuosos, eles o são sempre.
uma linha que rompe o vermelho formando uma oval.
coroada de bolas flutuando.
o encardido embrulho do corpo.
o pequeno ventre, um umbigo marcante.
poros pequeninos quase imperceptíveis.
de cor parda manchando de respingos.
pulam fios negros ordenados.

[Redor, 2007]


Bio/Biblio
Nasceu em Belo Horizonte e mora do Rio. Já foi advogada e designer gráfica. Doutora em letras (Paris 3) é pesquisadora e professora de literatura na Uerj. Fez algumas traduções para a Inimigo Rumor. Publicou em 2007 Redor pela 7letras.


poética
roubar outras, o silêncio, ler se apropriando, traduzir, ficar perto de.

"la poésie dit ce qu'elle dit en le disant (ne dit rien d'autre, le dit littéralement : non paraphrasable, voire, c'est encore pire, non interprétable), et à ceci : la poésie dit ce qu'elle dit en se disant (fait ce qu'elle dit et dit ce qu'elle fait). Réflexivité et littéralité ont quelque chose à voir. Littéralement c'est-à-dire explicitement. Proématiquement toujours. Et encore : la «littéralité» a affaire à la question (difficile) de : dire ce qui est, ce qui se passe, dire cela, transférer aux mots (impossiblement, mais nécessairement) cela qui est la réalité, le «réel», intraitable, etc. La réalité c'est-à-dire la nudité, la nudité dénudée, l'«ossature des choses»." [Jean-Marie Gleize]

Saturday, October 27, 2007

ANA GUADALUPE



mencionada por:
renato mazzini
bruna beber

menciona a:
ademir demarchi
alice sant'anna
eduardo siqueira
renato mazzini
sabrina bandeira lopes





poemas:


guerra

tique nervoso
à espera de alguém
que venha

beber água
desabotoar as calças
jogar bola

atirar no macio
arrancar os músculos
acumular fôlego

pra sufocar
com o próprio peso
o peso do outro:

uma bigorna
um piano
um travesseiro.




band-aid em lixo de hotel familiar

permita-me dedilhar
suas veias – poéticas –
convencer que compre
um álbum

o mapa – geográfico –
do mundo no corpo humano
em figurinhas pra recortar
seus exageros

pra ensinar – científico –
que chagas são os cortes
permanentemente abertos
dos hemofílicos




vupt

só leu um livro na vida
que falava sobre o vento
com voz fina

se lhe escrevo um verso
e leio em voz alta
não vê graça

não sabe ouvir pausas
como as minhas
nossas idas e voltas

agora não adivinha
que carrego um poema
pra entregar antes que vá
embora junto com a ventania




bio
tenho 21 anos, vivo no paraná (nasci em londrina, moro em maringá) e estou no 5º ano de letras. já fui professora de inglês, fiz tradução e estágio em biblioteca pública. atualmente sou webdesigner aprendiz e faço revisão de texto. nas horas vagas publico (inutilidades e) poemas em blogs como o
http://welcomehomeroxy.blogspot.com/search/label/poemas e na coluna semanal chamada selo - que mantenho há seis meses no jornal o diário (do norte do paraná).



poética

meu plano B é dizer que poemas nem sempre são sinceros e às vezes perdem a graça quando colocamos os óculos.


Saturday, October 20, 2007



anéis



quero alegria pro poema
mas os versos saem em mi


tento decorar as penas
estão desbotadas


todas as cores
vejo em preto e branco


canto para esquecer
a grande confusão das coisas simples


não sei de que material seco são feitas
as perdas.


broches

aproxima-se o desconhecido
e junto dele a gritaria
dos grandes começos

ainda não sabe dizer
com quantas rouquidões
se faz um recuo

por isso o silêncio e a tosse
infalível técnica
de disfarces.


brincos

o medo amarela
os dentes corrói
todas as tentativas
de nomeá-lo

nada nos assegura
nem ninguém poderá
nos defender: estamos vivos

e se do paraíso estamos longe
cada vez mais longe quero viver
distante, muito distante
do que só é possível no papel.

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MINIBIO
Bruna Beber tem 23 anos, é carioca, mas vive em SP há dois meses. Formou-se em Comunicação Social (Publicidade) em 2005, e trabalhou como redatora publicitária, jornalista e tradutora. Também já trabalhou com pesquisa, produção e revisão de conteúdo para livros e fez roteiros para a TV Futura. Hoje trabalha no departamento de Internet (Websurfing) de uma agência de Marketing de Guerrilha.
Publicou, em 2006, seu livro de estréia, A fila sem fim dos demônios descontentes (esgotado), pela Ed. 7 Letras. Colaborou com diversos sites e revistas impressas de literatura, poesia, música e Internet: Portal Literal, Paralelos (revista virtual e blog), Bala, Escritoras Suicidas, A Máquina do Mundo, Latin.Log, Capricho e Entrelivros.
Já teve seus poemas publicados na Alemanha, Argentina e México. Edita o blog Bife Sujo ( http://badtrip.com.br/bifesujo/) e o poetrycast Mike.
Os poemas acima estão no seu próximo livro - Balés - ainda sem data de publicação.

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POÉTICA

Movimento.


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Saturday, October 13, 2007

RÉGIS BONVICINO





Masé Lemos

menciona a:
João Cabral de Melo Neto
Carlos Drummond de Andrade
Murilo Mendes
Torquato Neto
Paulo Leminski


Poemas:

Caminho de hamster



Fedendo a cigarro e a mim mesmo
cruzo uma avenida
ao anoitecer
sirenes, carros

vozes abafadas
avenida larga e áspera
numa rua transversal
o cadáver de um cachorro

atropelado
rodas metálicas em ritmo lento
fedendo a esgotos e a mim mesmo
a um pouco de fogo, do isqueiro

fedendo como aquela maçã podre
fedendo a música estúpida
desses tempos
e a mim mesmo

o lixo recolhido exala
um cheiro nítido na calçada
fedendo a sapatos e a mim mesmo
a ratos, ao suor dos néons

a cadeiras e a mim mesmo
a notícias inúteis e a mim mesmo
fedendo sob a lua
narinas entupidas de gás carbônico

o som do motor do ônibus
fedendo as mesmas camisas
fedendo a miopia e a mim mesmo
fedendo a esquinas

exalando cheiros
fedendo a expectativas
que no entanto acabam
na próxima linha





Duas linhas



Mula de kleins, valentinos
guccis, missonis
cavalga num camelo
num gato e numa limusine

para as lentes de Testino
mula de Versace
fazendo sexo sáfico
com Sadie e Davinia

sempre em posições
impossíveis para dormir
andando a cavalo
com Marianne Faithfull

ouvindo as guitarras bárbaras
de “Sister Morphine”,
afogada em poças de perfume
guia dos amigos

também desprezíveis
obnóxios, párias
que fazem swing
musa do thatcherismo

bomba bêbada
usa disfarces
para revelar-se
no começo, transportava

nas calcinhas e sutiãs
em valises de Klein
delicia-se com iguarias em bandejas
I hate Kate

I push Bush
ficou quatro semanas imobilizada
por argolas fixas
grades pontiagudas

num quarto escuro
em permanente eclipse
e foi lavada com água suja
para que refletisse



a fome arranca as entranhas
o som arrebenta os tímpanos
botas de veludo Alexander McQueen
negras

outro soldado entra
no quarto o alarme soa
estridente
e multiplica o suplício





DEFINITIONS OF BRAZIL

Brazil is located on the southern tears of the Americas
Brazil is a jungle with snakes who eat cakes
Brazil speaks Lebanese, Portuguese, Japanese, Guarnaríse, Tupiese, Inglese
Brazil is an adulterating medley of intoxicated syncopations
Brazil has no relationship with itself because it has a relation only to itself
Brazil lays its cool hands on your hot head
Brazil was colonized by Indians who turned the Portuguese into natives
Brazil’s Tolstoy is now doing tricks in a favela
Brazil is a land of palms and psalms
Brazil is the model of a model
Brazil is a charm bracelet that has become the necklace of the continent: São Paulo more European than St. Paul, Brazillia more bureaucratic than Geneva, Rio more alluring than Boca
“They've got an awful lot of coffee in Brazil”
In Brazil, the cuckoo sings “macaw, macaw, macaw”
Brazil is private property of no man’s God and no woman’s Fury
The patron saint of Brazil is its dreams, just as is its Devil
Brazil is a carioca not a polka
Brazil is Carmen Miranda’s Tutti Frutti hats, Caetano Veloso’s all-weather tropicalismo, Bebel Gilberto’s number on the charts.
Brazil is the Elis and Tom “Waters of March” International Airport and Spa
Brazil is caipirinha with feijoada (caipira with fedora)
Brazil is home of the cassava or tapioca, what you call yuca, or mandioca or aipim or moogo or macaxeira or singkong or tugi or balinghoy or manioc
Brazil is the black mask of the PCC inscribed with the words traitor, betrayer
Brazil is 186 million stories, 186,000 poems, but only these definitions
Put your stocks in Brazil and your bonds in China, or is it the other way around?
Brazil is a figment of the imagination of the Amazon
If Pelé is poet laureate of Brazil, without ever writing a word, then Ronaldo Gaúcho
is the Nijinsky, without ever having set foot in the Ballet Russe
Brazil is not emerging it’s proliferating
The official religion of Brazil is not just samba but macumba and umbanda, tarantella and churrasco
Candomblé is the Brazil wood of world philosophy
Brazil is Fred & Ginger Flying Down to Rio with Dolores Del Rio
Under the veneer of its vivacity, Brazil is violent, a vile viper playing a violet viola.
In Brazil, anything goes for a chance, for a price, for a piece, for a dance, for a fight, for a night; jeitinho brasileiro is born free but everywhere in chains
Brazil’s face never shows its heart even when they are identical
Brazil stars Bob Hoskins, Jonathan Pryce, and Robert DeNiro
Brazil was written by Terry Gilliam and Tom Stoppard
Brazil is concrete and syncretic
Brazil is impenetrable and forgiving
Brazil is cannibalizing and carnivallizing
Brazil is a baroque barcarolle with a bossa nova beat
Brazil’s Lula is a little loco, but not as loco as Lucy
On Ipanema beach, at the very moment when dusk turns to night, you can hear Orpheus singing for Eurydice; he sings an elegy called Brazil
In Brazil, the real is the only currency that counts

(with Charles Bernstein)









Entrevista de Régis Bonvicino à revista Teresa

Teresa. Como você pensa a relação entre o tempo literário e o tempo histórico?
RB. O tempo literário deve durar mais do que o tempo histórico, caso contrário não chega a se configurar como literário, haja vista – como exemplos de contemporâneos que foram bem-sucedidos em suas épocas e permaneceram – Camilo Pessanha, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Murilo Mendes e outros. No entanto, sem o tempo presente, não há poesia, mas algo inominável chamado de poesia. O poeta que não enfrenta as dificuldades do contemporâneo ou seu tempo histórico acaba por mimetizar o contemporâneo de ontem – o que ocorre à farta na poesia brasileira atual. Ela poderia perfeitamente não existir! Sua inutilidade e/ou desnecessidade advém desse epigonismo: o contemporâneo de ontem e anteontem, dos modernismos, concretismos, surrealismos, popismos, caetanismos, por meio da Tropicália, etc. etc. etc. Certa vez Drummond disse que havia se cansado de ser moderno e queria ser eterno. O equilíbrio entre tempo histórico e tempo literário torna um autor eterno e moderno na acepção de contemporâneo: “O novo que permanece novo”. Pessoalmente, se tivesse de escolher, sob riscos, ficaria com o tempo histórico, porque só ele me permite a invenção, e não a mera dedução de uma poesia imitada do “literário”.

Teresa. Quais procedimentos sua obra adota diante de um mundo em que predominam a ação econômica e a espetacularização da arte?
RB. Adoto os procedimentos da crítica, de ser crítico ante a economia e a espetacularização da arte; adoto também técnicas de contraste, de violência. Aliás, retomando, o inominável que se chama de poesia ora produzida no Brasil, esse inominável é pouco crítico e bastante fâmulo. Ele, esse monstro chamado poesia brasileira atual, mimetiza, às avessas, a espetacularização da arte: muita auto-promoção e nenhuma criação e/ou invenção, isto é, sem sentido crítico. Andy Warhol acertou: os artistas preferem a fama à lama.

Teresa. Qual reflexão sua obra produz sobre a tradição literária brasileira?
RB. Por uma questão ética, não me permito falar sobre meu próprio trabalho. Prefiro remeter os leitores de Teresa a meu website, , onde poderão encontrar alguns escritos alheios sobre o que produzo, e igualmente prefiro falar por meio do poema “Prosa”, que ora envio como parte da resposta.

Teresa. Como você pensa a forma literária?
RB. A partir de um diálogo entre a tradição literária e o agora, num confronto violento entre eles. O que produzo é muitíssimo diferente do que João Cabral produziu, mas sinto-me próximo dele, em todos os aspectos (menos na grandeza); não falo de mim em meus poemas. E dou importância ao acabamento formal de um poema. Se fosse um poeta norte-americano, gostaria de ter sido um objetivista (William Carlos Williams, George Oppen sobretudo). Dou importância para a linguagem e procuro juntar conteúdos à forma, mensagens às formas.


Prosa
Régis Bonvicino

Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras, sóis às avessas, não se vende como prosa, só como história ou arremedo de poema, não se vende como ferro-velho, pedaços de mangueira de um jardim, tambores de óleo queimado, sequer um pintassilgo, cantando no aterro de lixo ou a língua negra dos esgotos, que floresce algas, não se vende como grafite, não se vende como foto, vídeo ou filme de arte, não se vende como réplica ou post card, mau negociante de inutilidades, me tenha impregnado da praga das palavras









Régis Bonvicino nació en la ciudad de São Paulo, el 25 de febrero de 1955. Se graduó en Derecho en la Universidad de São Paulo en 1978. Trabajó como articulista del diario Folha de S. Paulo y de otros vehículos, hasta ingresar en la magistratura, en 1990. Desde 1992 está casado con la psicoanalista Darly Menconi y tiene tres hijos: João, 27, Marcelo Flores, 20, y Bruna, 14.
Sus tres primeros libros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) y Sósia da cópia (1983) fueron ediciones de autor. Hoy se encuentran reunidos en el volumen Primeiro tempo (Perspectiva, 1995).
Entre sus participaciones en lecturas de poesía se destaca su presencia en Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhaguen (1993); y en la III Bienal Internacional de Poetas en
Val-de-Marne (1995). En París, realizó lecturas en la Maison de L´Amérique Latine, y en Marsella, en el Centro Internacional de Poesía. Las lecturas se extendieron a Berkeley (1996), con Michael Palmer, y a San Francisco State University. En 1998, se presentó junto a Charles Bernstein en el Segue Performance Foundation, de Nueva York. En 1999 estuvo en Santiago de Compostela, en la Universidad de Santiago. Realizó lecturas en Chicago y en Iowa City (2000), con Michael Palmer; participó del IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Se destaca además su participación en la Feria del Libro de la Ciudad de México (2004). Su trabajo está traducido al inglés, español, francés, chino, catalán, finés y danés.
Entre 1975 y 1983, dirigió las revistas de poesía Qorpo Estranho – con tres números –, Poesia em Greve y Muda. En 2001 fundó la revista Sibila (), que codirige junto a Charles Bernstein e Idalia Morejón. Actualmente es publicada por la Editorial Martins Fontes.
Sus más recientes libros son Página órfã, poemas, 2007, y Um Barco Remenda o Mar/ Dez poetas chineses contemporâneos, 2007, coeditado con el poeta chino Yao Feng, ambos por Martins Fontes.



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Bibliografia

Poesía
Bicho papel. São Paulo, Edições Greve, 1975.
Régis Hotel. São Paulo, Edições Greve, 1978.
Sósia da cópia. São Paulo, Max Limonad, 1983.
Más companhias. São Paulo, Olavobrás, 1987.
33 poemas. São Paulo, Iluminuras, 1990.
Outros poemas. São Paulo, Iluminuras, 1993.
Ossos de borboleta. São Paulo, Editora 34, 1996.
Céu-eclipse. São Paulo, Editora 34, 1999.
Remorso do cosmos, Ateliê Editorial, 2003.

Plaquettes
Me transformo ou o filho de Sêmele. Curitiba, Tigre do Espelho, 1999.
Hilo de piedra. Plaquette editada por la revista Sibila; revista de arte, música y literatura, nº 10. Sevilla, oct. 2002 (con poemas de Céu-eclipse y Remorso do cosmos).

Antologías
Primeiro tempo. São Paulo, Perspectiva, 1995 (reunión de los libros Bicho papel, Régis Hotel e Sósia da cópia).
Sky-eclipse: selected poems. Los Angeles, Green Integer, 2000.
Lindero nuevo vedado. Porto, Edições Quasi, 2002 (con poemas de 33 poemas, Outros poemas, Ossos de borboleta e Céu-eclipse).
Poemas (1999-2003), Ciudad de México, Ediciones Alforja/Conaculta/Fonca, 2006.

Poema coletivo
Together – um poema, vozes. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.

Poesía Infantil
Num zoológico de letras. São Paulo, Maltese, 1994.

Crítica
Desbragada (antología y estudio de la poesía de Edgard Braga). São Paulo, Max Limonad, 1985.
Nothing the sun could not explain / 20 contemporary Brazilian poets. Edited by Michael Palmer, Régis Bonvicino and Nelson Ascher. Los Angeles, Sun & Moon Press, 1997.
The PIP anthology of world poetry, volume 3, Nothing the sun could not explain; 20 contemporary Brazilian poets. Edited by Régis Bonvicino, Michael Palmer and Nelson Ascher. Los Angeles, Green Integer, 2003.
Envie meu dicionário (cartas e alguma crítica), com Paulo Leminski. São Paulo, Editora 34, 1999.

Traducción
LAFORGUE, Jules. Litanias da lua. São Paulo, Iluminuras, 1989.
GIRONDO, Oliverio. A pupila do zero. São Paulo, Iluminuras, 1995.
PALMER, Michael. Passagens. Ouro Preto, Gráfica Ouro Preto, 1996.
CREELEY, Robert. A um. São Paulo. Ateliê Editorial, 1997.
BERNSTEIN, C., MESSERLI, D., COLE, N. e BENNETT, G. Duetos. Paranavaí. Editora UEPG, 1997.
MESSERLI, Douglas. Primeiras palavras. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.

Colaboración
Cadenciando-um-ning, um samba para o outro. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001 (con Michael Palmer).

Artes Plásticas
Do grapefruit. São Paulo, Edição dos artistas, 1981. (traducciones de poemas-instrucciones de Yoko Ono, com trabajos gráficos de Regina Silveira y Julio Plaza).

Homepage
http://regisbonvicino.com.br









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Friday, October 12, 2007

LEANDRO SARMATZ





Barro

No barro escuro,
na noite escura,
na pré-noite de todas as noites escuras
feitas de cinza e merda e gritos.
Na noite silente do gueto.
O cheiro é uma mistura de peixe
e morrinha de roupa negra.

(Esta é uma epopéia subterrânea de cheiros,
pestilências e ocasionais martírios.)

O pão é de centeio,
com ele é possível esculpir figurinhas doentias e encurvadas
pelo frio e pela fome:
fantasmagorias de carne e ortodoxia.

(Do poema Golem, ainda inédito)

Fevereiro de 2001

No holtezinho fuleiro em frente à Gare du Nord nós trepamos pela primeira e última vez.
Era argentina. Vinha de Rosário. Era pequena e miúda como um efebo, a bunda estreita de [efebo, uns pezinhos cor de barro.
A mãe estava pelas redondezas. Circulava com o namorado, outro argentino radicado desde [a última quartelada.

Conheci-o mais tarde, o perfil adunco, ar de quem acompanhou a vida com uma úlcera.
“O mais importante”, disse-me dentro de um café horrendamente decorado com máscaras [do carnaval veneziano e fotos da família de monsieur Faisal, o dono do pedaço,
“é aprender a escutar a úlcera, sua linguagem, sua prosódia, seus apelos tão particulares.”
“A úlcera dialoga, a úlcera fala conosco em sua linguagem entranhada.”
“Esqueça Dujardin, esqueça Joyce”
(era um literato),
“A verdadeira voz aqui dentro é a ardência dela.”
E percutia os nodosos dedos na altura do diafragma.

“Uma vez estive com Borges”, sorria.
“Há um clichê terrível nessa afirmação: qualquer um
que escreveu naquele país entre 1938, digamos, e 1986, esteve alguma vez com Borges.”

(E quando dizia “naquele país” eu já sabia que isso significava a Argentina,
nome nunca proferido, Adonai de exilado.)
“El viejo era generoso e fraco como uma putinha bexiguenta.”
“Foi por volta de 64, ele havia publicado El otro, el mismo”.

Ficou então alguns segundos em silêncio.
“Você o leu?”
É claro que eu tinha lido.
“Tem aquele poema sobre o golem, lembra?”
“Um poema magnífico, musical, arcano como tudo o que ele perpetrou.”
“Mas é um poema tremendamente equivocado. Completamente equivocado.”
Desfrutou um pouco do efeito da surpresa.
“Borges lia muito, mas, às vezes, lia meio atravessado,
aquela leitura diagonal e apressada que nós, que já fomos
estudantes diligentes, sabemos direitinho como é.”
Piscava então o olhinho com um ar matreiro.

“Borges descobrira Scholem, lera-o algumas páginas,
estava absolutamente fascinado pela mescla de erudição
e crença genuína.”
“Scholem lhe deve ter parecido um antídoto para o golem
deturpado de Meyrink, o famoso episódio sobre a leitura de Der Golem
nos anos imaturos de Genebra.”
“Mas El viejo tinha um gosto por aqueles filmes de monstro dos estúdios Universal.”
Tomava um último gole de café, alheio à úlcera e à realidade.

Escurecia e começava a chover. Era fevereiro na Europa,
Paris era Paris: mas também era apenas de onde falávamos da terra
vazia e sem memória, pampa com Alzheimer..
“Releia o poema”, dizia com um ar professoral
que combinava
com seu suave desalento de exilado.
“Tem um pouco de Boris Karlof.”
“Releia-o.”Prometi.

“A legenda do golem é o anti-gótico: é um último apelo à metafísica
em um mundo regido pela estética”.
Tentava organizar a massa crespa de cabelos desgrenhados.
“Borges transformou-a em artifício expressionista,
repetindo, já velho, o estudantezinho míope de Genebra.”
“Um verdadeiro golem não se parece com um Frankestein do gueto.”

E dando por encerrada a conversa, pagou a nossa conta e seguiu rumo ao metrô.
Reparei então como andava encurvado, como em luto.

(Do poema Golem, ainda inédito)


À espera do canto

I
Morena, você canta para mim
É para mim que você canta?

O marinheiro só
na praia escura.
Na rua do fim da rua,
o marinheiro só.

Tão longa espera, à noite. Em densa
vaga, tateamos à procura
de um significado. Homens à prova d´água,
portas à prova de fogo. Há uma fuga
resignada, mais passeio para o nada
do que a própria fuga.
Em nossas águas nadam peixes, neurônios, amnésias.

Penso na realidade, jogo o jornal para bem longe.
Sou síntese do quê? De mim antes ou depois?
De nunca eu mesmo?
Sou síntese?

II
Ulisses, tão mouco a navegar,
tapou os ouvidos com pegajosa e fresca
cera. Também fez-se amarrar ao mastro,
entre sorrisos e amavios:
quis capturar e ser capturado,
quis brilhar ao contemplar o brilho,
folhear a nudez obscura, os papéis, os contratos, as palavras cruzadas, o salmo, os verbetes,
[o reclame, o epitáfio, a canção, o enunciado, o poema.

Orfeu, teu canto resignado
após as cinzas é sucedâneo
cruel, sem compaixão,
do estribilho de outro canto
opaco; triste e sentido
que entoamos, papalvos, embriagados
de nós mesmos a cada noite,
a cada tic-tac do relógio,
do coração,
do sexo.
Moldado em barro,
murmúrio e disparate.

III
Numa noite distante no tempo e no espaço,
numa noite no Leste,
madrugada na casa paterna:
deu um clique na cabeça
e a história fez-se história
e trouxe a sentença irrevogável.

Manhã, as pernas dormentes
não sustentam o esqueleto
humano, essa triste armadura de pó sob as carnes
frescas a transpirar por essa pele
debaixo do tecido dos andrajos.
Difícil levantar numa hora dessas.
IV
O marinheiro só
na praia escura.
Na rua do fim da rua,
o marinheiro só.

O marinheiro só
escuta a sirene
ao longe, na avenida.
O marinheiro só.

É doce morrer no mar,
no sal amargo da margem.
A imagem mais real
é essa que não levamos.

Diga a ela que eu não vou
partir de manhãzinha:
vou à noite, que convém.
Diga a ela que eu não vou.

V
A sereia pega no batente às 11 horas
da manhã. Chega fresca, os cabelos
molhados. Vem da cidade nova.
A sereia pinga aqui e ali a gota acre
do sangue ultramarino, odor de tempos
em que ainda não se contava o tempo,
não havia sol nem norte:
só abismos, ações e mistérios.

Diz-me, sereia,
se há lá fora,
além do limite
das janelas,
uma vida real
ou se é miragem
o mundo anunciado
pelas chuvas?


Ouço teu canto
revérbero que
bolina meu ouvido,
esse teu canto
sem música:
clarim do dia
à espreita
daquilo que perdemos:

um corpo material
e outro corpo, fluído,
que corre contra
a maré; não mais
corpo nem matéria,
não mais coxas, bocas,
seios. Divisão.

(Como em espetáculo circense, em que a serra cenográfica e as caixas coloridas
simulam destroçar as partes de cima e de baixo enquanto o público, tenso,
respira aos goles o horror antevisto da repartição e goza antes o mistério
do corpo unificado, assim teu corpo é cindido de mim e do meu gozo, gesto e refração
no espelho aquático: correm rios, mares, poças.)

VI
Lá do fim da arrebentação
onde a voz agora abafada
traga meu corpo e seus segredos
busca meu ser estremado
sem partes reconhecíveis
nem resquício de forma
feição ou precisa estrutura
vejo um gesto solto no espaço
não sei se me chama ou se vem
tampouco se entendo o que vou.





Biografia

Nasci em 1973, em Porto Alegre. Vivo em São Paulo desde 2001. Sou jornalista e dramaturgo.


Poética

Minha família falava iídiche. Eu não falo iídiche.Mas tenho a memória: ela me serve como um idioma.





Sunday, September 23, 2007

RENATO MAZZINI


mencionado por:

menciona a:
Ana Guadalupe
Bruna Beber
Alice Sant'anna
Sérgio Cohn
Marcos Siscar




Poemas

de repente quando o granizo

revoada invertida dos mesmos pássaros
que haviam seguido por ali antes
eu pude identificar gaivotas,
tinham a pena por couro, uma pele
espessa
e o granizo punha pedregulhos
como jóias cravejadas em seus
dorsos mínimos: havia,
de outro modo, uma
pelúcia glacial que podíamos ver
ou tocar mas jamais saber
a dor de ter sido incrustada ali

de repente quando o granizo,
silêncios tecidos
e uma outra ave convergiam,
desenhavam no ar, embaralhavam
as letras de nossos nomes

......................

buraco negro

as obsessões certas.
cartas de baralho e
de palavras. pessoas.
lã. lugares. geometria.
presunções equivocadas
tão orgânicas que até
perfeitas. o exame
radiográfico deste
tipo subsidiário de
solidão. coletivos de
nomes. as grandes
mandíbulas das cidades.
as alegações. as negações.
vícios e atrasos.
carne no freezer. vazio.
etiópia. luminárias.
o abandono dos cadernos
escolares. o sexo dos
cheiros. a doutrina
sacramental do absoluto
nada dizer. a soma
de termos aleatórios
pinçados de provérbios.
o viço dos cavalos. as
lâminas potencialmente
mortais dos ventiladores.
conversa tola. um quadro.
um abraço. um camelo.
uma pose de mártir. uma
sonda espacial. gravuras.
porcos. síntese. um
restaurante com estalactites.
museu. barcos. uma balsa
morta dos mortos para os
mortos. falar mal de vivos.
um pensamento. canela. ar.
golas. placas tectônicas.
a umidade assumida nas
bochechas e retinas.
o receptáculo para um
coração quente pulsante.
plástico. ovos. flanela para
a poeira dos abajures.
pássaros. a circunferência
irregular de um buraco negro
que engole cada minúcia
disso tudo e com arrojo
arrota.

....................

o anil adolescente deste céu
debaixo do qual respiramos
as nuvens para dentro de
nossos corpos

melodia fina e quase-quieta
de papéis sendo compressos
em envelopes retangulares
ao infinito

infusão nos copos de chá
bebidos às pressas de tarde
em dias demasiado curtos
para amar

novas e maravilhosas coisas
papel de parede para a vida
a escola nos transformando
em comunistas

.....................


Bio: Nasci em Março de 1981, em Santa Fé do Sul, interior escondido de SP. Leciono inglês há 7 anos, desde que parei de trabalhar com rádio, o que fiz durante outros 7 anos. Escrevo crítica musical desde 2004. Publiquei poemas em minguados ex-blogs no passado, e hoje mantenho um pequeno espaço (
http://renatomazzini.blogspot.com) onde veiculo o que tenho escrito nesses últimos anos, além de algumas traduções de poetas de língua inglesa de que gosto neste outro blog (http://poesiacomchopsticks.blogspot.com) com a ajuda da Ana e de possíveis colaboradores futuros. Manufaturei, no passado, alguns poezines, folhetins minúsculos de poemas, distribuídos entre muitos amigos e uns poucos estranhos interessados e atenciosos. Não existem mais. (Os escritos, claro; os amigos permanecem, e os estranhos ainda devem estar por aí).



Poética:
Vejo que, com a poesia, é possível percorrer dois caminhos principais distintos: 1) encher o mundo com pequenos fragmentos de autobiografia, não importa o quão inconscientemente disfarçada esteja, ou 2) observar e transmitir impressões externas através da lente mais singular possível, que é a sua própria. Ainda não sei qual dos dois atalhos tomo com meus poemas. Honestamente, espero que seja um misto de ambos, acoplado de muitas outras coisas que não sei bem o que são, mas que sempre se revelam bastante adequadas ou terrivelmente avessas ao centro da escrita.


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Friday, September 21, 2007

VERA LÚCIA DE OLIVEIRA


mencionada por:
Donizete Galvão

menciona a:
LÊDO IVO
CARLOS NEJAR
IACYR ANDERSON FREITAS
CARLOS MACHADO
SÔNIA BARROS



Poemas

(do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, Brasília, 2006)
APRENDI O VENTO

aprendi o vento nas traves doendo
aprendi no escuro das traves
aprendi nas telhas
moendo seu sopro
aprendi como um bicho
aprende o uivo
de outro bicho
como a viga
o estalido
de outra viga



OS PÁSSAROS

os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto



SEMPRE

fui sempre
de percorrer na carne
o puído dos vãos
sempre de pôr o pé
na intimidade
das veias
sempre de lavrar
os dias mais
ferozes
para que doendo
amansem a morte


A LAMA

a lama de que brotou o osso
a lama de casa própria
pegadiça e lenta
a lama
de fundo de quintal
a lama de chuva fina
(ancoradouro
de enxurradas)

a lama por onde deflui
a essência do nosso sangue
a lama onde roça
o nosso pisado
a lama de que se molda
a substância
do cordão umbilical



PELO FOGO DA FALA

pelo fogo das palavras
pela sarça ardente das palavras
pisando por rugas de telhas
enquanto o coração crescia

pelo fogo da fala
pelo pavio secreto da língua
pela fagulha ardente
crescia meu coração
como crescem as folhas
que o vento arrasta no ardor da combustão



BIO-BIBLIO

Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota e cresceu em Assis em 1958, no Estado de São Paulo. Atualmente trabalha na Università degli Studi del Salento (Itália), onde ensina Literaturas Portuguesa e Brasileira. Formou-se em Letras pela Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), em 1981, e em Línguas e Literaturas Estrangeiras, em 1991, pela Università degli Studi di Perugia, na Itália. Neste mesmo país, obteve o doutorado, em 1997, pela Università degli Studi di Palermo.
É autora de trabalhos sobre poetas contemporâneos, publicados em revistas brasileiras e estrangeiras. Além da produção ensaísta, recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2005), pelo livro A chuva nos ruídos, o Prêmio Sandro Penna (Itália, 1988), por um conjunto de poemas inéditos, o Prêmio Nacional de Poesia de Senigallia (Itália, 2000), pelo livro La guarigione, o Prêmio “Popoli in cammino” (Itália, 2005) e o Premio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006), pelo livro Verrà l’anno, considerado entre as três melhores obras de poesia publicadas na Itália em 2006. A autora, que escreve tanto em português como em italiano, tem seus poemas traduzidos e publicados em várias antologias no Brasil, Itália, Portugal, Inglaterra e Espanha.
Traduziu e organizou as antologias poéticas de Lêdo Ivo, Illuminazioni, Multimedia, Salerno, 2002 (ISBN 88-86203-34-9), 128; Carlos Nejar, Miei cari vivi / Meus estimados vivos, Salerno, Multimedia, Salerno, 2004 (ISBN 88-86203-39-X), pp. 58; Nuno Júdice, Por dentro do fruto a chuva, Escrituras, São Paulo, 2004 (ISBN 85-7531-123-9), pp. 160.
Tem os seguintes livros publicados: A porta range no fim do corredor (poesia), Scortecci, São Paulo, 1983; Geografia d’ombra (poesia), Fonèma, Venezia, 1989; Pedaços / Pezzi (poesia), Etruria, Cortona, 1992; Tempo de doer / Tempo di soffrire (poesia), Pellicani Editore, Roma, 1998; Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio), Unesp e Edifurb, São Paulo, 2002; La guarigione (poesia), La Fenice, Senigallia, 2000; A chuva nos ruídos - Antologia Poética, Escrituras, São Paulo, 2004; Verrà l’anno (poesia), Fara Editore, Santarcangelo di Romagna, 2005; Storie nella storia: Le parabole di Guimarães Rosa (ensaio), Pensa Multimedia, Lecce, 2006; No coração da boca (poesia), Escrituras, São Paulo, 2006; Entre as junturas dos ossos (poesia), Ministério da Educação, Brasília, 2006.



Poética


DIÁSTOLE E SÍSTOLE, MOVIMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA POÉTICA
[1]

Vera Lúcia de Oliveira

“Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si. Para nossa grande tristeza, a memória é o único laço de ligação com os mortos. Portanto, a convicção de que a recordação seja um ato ético é profundamente radicada em nossa natureza de seres humanos (...). A insensibilidade e o esquecimento parecem caminhar juntos”.
Susan Sontag

Dizem que o século XX é, por antonomásia, o século do exílio, das grandes migrações de povos, dos movimentos gerados por guerras, genocídios, perseguições étnicas. Tudo isso produziu transformações e acentuou, conseqüentemente, pesquisas ligadas aos mecanismos de assimilação e/ou resistência cultural, monolingüismo e/ou coexistência de línguas diferentes em um mesmo indivíduo e em um mesmo território. Tais estudos interessam à sociologia, à antropologia cultural, à lingüística, à psicologia, à psicanálise. Também no âmbito da literatura, incrementou-se cada vez mais uma comunidade de escritores migrantes, que exprimem, em primeira pessoa, questões ligadas ao desenraizamento, à marginalização, à busca de um novo espaço físico e cultural, à solidão, à nostalgia. Tais escritores e intelectuais são, contudo, também testemunhas de que o diálogo entre povos é possível - não obstante as discrepâncias religiosas, lingüísticas, culturais -, são testemunhas de que o encontro e a convivência levam a um enriquecimento humano. Eles são, com suas peculiaridades, agentes e promotores de paz, porque estão na confluência entre mundos; são pontes que unem fronteiras e margens heterogêneas.
A própria tradução e a autotradução, para estes autores migrantes, tornou-se um instrumento fundamental não só de conhecimento da alteridade e de autoconhecimento, mas de aproximação e intercâmbio, já que a globalização não pode ser entendida como a hegemonia de uma língua sobre as outras, de uma nação sobre a outra. Conhecer-se e conhecer o outro é evitar incompreensões, conflitos e guerras. Conhecer a dor de quem parte e retorna, ou não retorna, é tornar-se mais tolerante, mais aberto às dinâmicas psicológicas envolvidas na experiência da migração e da conseqüente necessidade de tradução. É justamente com o intuito de refletir sobre estas questões que tentarei reelaborar aqui, brevemente, a minha experiência de escritora “migrante”, nascida e crescida no Brasil, que vive e trabalha há diversos anos na Itália e que convive, na poesia, com o fenômeno do bilingüismo.
Cresci numa cidade do interior de São Paulo, no fértil Vale do Paranapanema, uma das regiões mais ricas do estado, mas também uma região onde as contradições sociais são evidentes. Belas cidades, com seus bairros nobres no centro, circundados por outros habitados por gente muito pobre, trabalhadores rurais expulsos do campo pelas condições insuportáveis de vida, que, de tardinha, voltavam nos caminhões de bóias-frias, com suas enxadas nos ombros, o cansaço nos olhos, a terra vermelha, como sangue, grudada no corpo, na roupa, marca indelével que nem todo sabão do mundo conseguiria lavar. Eu morava em uma vila de periferia, zona intermediária entre a cidade rica e a cidade pobre, e cresci em contato direto com tais problemas. Via ao meu redor gente que lutava obstinadamente para sobreviver, homens e mulheres que, com trinta anos, já eram velhos. Menina ainda, eu acreditava que o mundo inteiro fosse dividido em bairros ricos e bairros pobres, e imaginava que, se continuasse a andar do centro para a periferia, encontraria sempre mais miséria e degradação, até o infinito.
E queria entender o porquê disso tudo, em um momento complicado, de repressão e de censura política, muitas vezes interiorizadas pelas pessoas. Fazia perguntas aos meus pais e aos professores, sem receber respostas satisfatórias. Comecei assim a escrever: escrever ajudava a decifrar a realidade, a analisá-la. E eu queria falar sobre aquele mundo, contar histórias que conhecia, falar sobre as pessoas que me pareciam fortes e corajosas, não obstante a indigência em que viviam. Comecei escrevendo breves contos, às vezes escrevia e basta: perguntas e respostas que eu mesma achava, para tentar entender. A poesia, ao contrário, deu-me a possibilidade de exprimir-me com a máxima concentração e a máxima incisividade. E queria incidir sobre a minha realidade, embora mais tarde tenha descoberto que a poesia tem possibilidades mínimas de influir sobre o mundo.
O grande escritor italiano Primo Levi escreveu:

“Para o sobrevivente, narrar é atividade importante e complexa. É percebida ao mesmo tempo como obrigação moral e civil, como uma necessidade primária, liberatória, e como uma promoção social: quem viveu o lager se sente depositário de uma experiência fundamental, inserido na história do mundo, testemunha por direito e por dever, frustrado se o seu depoimento não é solicitado e acolhido, remunerado se o é.”
[2]

Não obstante o fato de que Levi se refira aqui à sua terrível experiência do lager, não comparável certamente à minha, há algo nestas palavras que senti como parte de mim mesma: a sensação do reduce, ou seja do sobrevivente, e a de dever de testemunhar tal experiência. Tive muitas vezes a impressão de ter sobrevivido à minha infância e adolescência. Pela vontade de saber porque o mundo era como era, porque precisava entender como se pode viver indiferente à angústia de quem sofre e morre ao nosso lado, e como um homem – que é capaz de tanto amor - acabe muitas vezes por torturar o próximo, por odiar e por destruir, por motivos fúteis.
Escrever, por isto, fazer poesia, não foi uma opção. Não sei fazer outra coisa com a mesma intensidade, não sei construir casas, não sou capaz de dar assistência aos enfermos, não tenho o poder de interromper a destruição das florestas, não consigo impedir que um homem mate outro homem, que um povo destrua outro povo. Sei escrever, e não como desejaria, não sei escrever palavras que possam mudar alguma coisa, que possam cancelar algum sofrimento.
Apesar dessa impotência da palavra, sempre concebi a poesia como algo de concreto, palavras densas, que têm muito mais a ver com as artes plásticas, com a escultura, do que com a música. O meu desejo seria o de abrir um livro um dia e ver caírem dele com força coisas, pedras, pedaços de objetos, tesouras, brinquedos, bicicletas quebradas, árvores, até mesmo cães, gatos, e sobretudo pessoas (não sei como), todas as pessoas que conheci, que não pude segurar junto a mim. Todo um mundo lá dentro, apertadinho nas páginas, que nos chama, que nos convida a acariciar feridas físicas ou espirituais, a reconstituir vidas e histórias.
A minha poesia é uma reflexão sobre os temas da dor, da morte, da incomunicabilidade, da fragmentação do ser e da nossa realidade. Nunca conseguir atribuir um sentido ao sofrimento. E no entanto a vida brota da dor, gera-se da laceração de um corpo de mulher. E cada coisa que se aprende, cada processo de crescimento e de maturação comporta sofrimento, incertezas, anseios. Também a morte é um grande mistério, mas a morte é o outro lado da vida, tudo é provisório no universo, tudo parece caminhar para o desgaste e a transformação da consciência em nada inerte, pelo menos da consciência individual. A morte física tem, pois, uma lógica nessa precariedade cósmica da matéria, embora seja, em absoluto, a experiência mais dolorosa que possamos ter. A dor, no entanto, e penso como Dostoievski, não tem uma explicação, nem do ponto de vista da filosofia nem da religião: é uma ferida aberta na consciência.
Uma amiga me perguntou uma vez, lendo meus poemas, porque parecia não chegar o momento de cantar a alegria em meus versos, que sondam em demasia a noite, que atravessam desarmados o sofrimento, querendo olhar por dentro do que não pode ser visto de olhos abertos. Respondi que não escolhi este tipo de poesia, deu-se o exato contrário. Não penso que tive menos sorte do que tantas outras pessoas, que vivi mais traumas, que senti mais dores ou que chorei mais do que outros, mas, desde criança, olhava ao redor, sentia e assimilava inquietações e angústias que percebia. Era desassossegada, virava em volta das coisas e queria vê-las por todos os lados, queria virá-las do avesso e vê-las por dentro.
Esse é um elemento importante da minha escritura e quase todos os meus livros são marcados por esta indagação existencial, embora alguns estudiosos tenham ligado este traço mais à uma vaga busca de universalidade e menos às minhas experiências concretas de vida no Brasil, em um momento tão difícil da nossa história, como foi o período da ditadura. E aqui introduzo um outro aspecto marcante, gerador de conflitos muitas vezes insanáveis no texto: é o fato, no meu caso, de existirem dois tipos de espaços geográficos, o Brasil (país em que nasci e cresci) e a Itália (país no qual vivo há vários anos). Esta dicotomia transparece continuamente nos poemas. Hoje escrevo nas duas línguas e os meus últimos livros são quase todos bilíngües, português/italiano. Tal dualidade é um sinal tangível do conflito gerado por essa convivência com duas culturas, muitas vezes díspares e contraditórias, bem como do meu esforço para harmonizá-las na escritura.
Afirma o estudioso Antonio Prete, a propósito do autores migrantes e bilíngües:

“a escritura é com freqüência o teatro de um conflito entre a língua materna e uma língua de adoção e de comunicação: as invenções da forma, e os modos da representação, passam por este conflito e por este confronto. As hibridações, as ofensas “inventivas” à ordem da língua adquirida, as recuperações de línguas da infância, ou de fragmentos das mesmas, o jogo pluri-lingüístico, são fenômenos que testemunham uma necessidade: preservar, no íntimo da língua, a dor de uma memória, de uma origem, mas, ao mesmo tempo, fazer da língua o novo país, em que a representação encontra o leitor, entra em diálogo com ele”
[3].

Essa dicotomia produz poesia, mas dá origem também a uma série de reflexões concretas, muito presentes e sentidas. Como continuar fiel a mim mesma, por exemplo, à minha língua, à realidade na qual me formei, e ao mesmo tempo fazer poesia em outro contexto e para um outro interlocutor? As imagens que carrego dentro, algumas das experiências mais intensas e incanceláveis são, muitas vezes, ligadas à infância e à adolescência, passadas no Brasil, imagens e experiências que as pessoas, com quem vivo hoje, na maioria dos casos, não partilham. São, além disso, experiências interiorizadas e interpretadas na língua portuguesa. Por mais que eu queira atenuar, há aqui uma ruptura entre dois tempos e dois espaços que é muito difícil de sanar.
Este problema, eu o vivi depois do segundo/terceiro ano de permanência na Itália. Continuei a escrever e a elaborar meus textos em português, mas isto era um trabalho muito solitário, porque utilizava na escritura uma língua, enquanto quotidianamente usava uma outra. Veio-me o impulso, assim, de traduzir alguns dos poemas, inicialmente para mostrá-los a amigos e partilhar tais experiências. Depois, sem que me desse conta, comecei a escrever diretamente em italiano: breves textos poéticos sobre paisagens da Úmbria (a bela região em que vivo, no centro da Itália), imagens de bosques, campos, montanhas, a mudança das estações que eu percebia de forma muito mais viva do que no Brasil. As pessoas, inicialmente, não entravam nestes versos, porque não confiava totalmente na minha capacidade de ler e interpretar gestos e expressões, já que, na empatia, as diferenças culturais podem pesar muito no início e gerar insegurança, senso de precariedade, desconfiança (o estrangeiro provoca, na verdade, inquietação e, tantas vezes, temor, porque não o conhecemos e não somos capazes de compreendê-lo plenamente. E até que não façamos um esforço para ir além das aparências, o outro continuará para nós um universo oculto e inacessível).
Sendo a língua do meu quotidiano, foi inevitável, pois, o uso do italiano como idioma de poesia, ao lado do português, mas, no começo, confesso que foi um choque. Vivi o fenômeno da dupla escritura, do bilingüismo literário, com angústia, pois tinha medo de perder o relacionamento privilegiado e profundo com a minha língua materna, o português brasileiro. Depois, aos poucos, acostumei-me a esta dualidade lingüística e a própria tradução me serviu, muitas vezes, para retornar aos textos originais e revê-los. A tradução, neste processo, é possibilidade de diálogo e é também transmutação e reinvenção do texto. Se toda obra literária tem uma vocação para a viagem, para a partida, ela carrega no seu bojo a terra de origem, o seu solo, a sua identidade. A tradução une dois elementos, o si mesmo e o outro, a partida e o retorno. Torna-se o caminho entre diástole e sístole, entre dicotomia e síntese.
O temor inicial, de dispersar-me entre os dois registros, os dois espaços e tempos da minha vivência e escritura, resolveu-se, assim, na tentativa de harmonizar e de sintetizar, através da poesia, as experiências diversas vividas nos dois países, já que cada uma delas tem a sua riqueza e a sua especificidade. Para isto, a poesia é propícia, pois é linguagem de harmonia, de integridade do ser: é esforço de unificação, é fadiga para permanecer íntegros. Nos livros publicados nos últimos anos, há uma tentativa de compor e conciliar segmentos de realidades diferentes, porque para lá dos fracionamentos econômicos, geográficos, das diferenças culturais, os homens são sempre os mesmos, com todo o bem e o mal de que são capazes, com todo a alegria e o sofrimento, na vida e na morte de cada um e de todos.
Naturalmente, existem diferenças marcantes entre as duas línguas e cada uma tem seu âmbito e sua peculiaridade. O português é um idioma muito rico para a expressão de toda uma gama complexa de sentimentos. O italiano, língua também bela e poética, não permite - como o português - esta mesma maleabilidade, porque os italianos, para certas coisas, para exprimir certos conceitos ou sentimentos, utilizam o dialeto. É o fenômeno da diglossia. Os brasileiros já usam a mesma língua para as mais variadas situações, só mudando o registro. Isto está ligado, é claro, à história dos dois países. A Itália sempre teve o problema da sobreposição, da convivência difícil entre língua e dialetos, onde o italiano funciona como língua oficial e o dialeto como língua informal do dia-a-dia, falada em família, entre amigos. Neste sentido, é natural que o italiano seja mais elegante, mais áulico e, muitas vezes, também mais literário.
Já o português, sobretudo o português brasileiro, tem uma acentuada propensão à afetividade. O poeta Raul Boop notou, não sem espanto, que até os verbos são usados no diminutivo. Este caráter afetivo da língua portuguesa foi notado já nos seus primórdios. No século XV, isso foi sublinhado por D. Duarte, no livro Leal Conselheiro. Este rei culto e melancólico tinha percebido a maleabilidade do português para exprimir certos estados complexos de alma, certos sentimentos, como a saudade, que dizem não ter tradução em outras línguas (ele foi o primeiro a defini-la).
No uso de dois idiomas tão peculiares, cada um com sua rica tradição literária, ocorre muitas vezes hibridação, não no sentido de que um interfira no outro, provocando confusão ou troca de termos (embora não se possa evitar em absoluto interposições, mesmo inconscientes, de um sistema sobre o outro), mas no cruzamento de tradições, ritmos intrínsecos, metros peculiares de cada idioma, em que um assimila algo do outro no próprio fazer-se do texto. É nesta ótica que, de fato, nasceu o primeiro livro, da série que a grande crítica e amiga, Luciana Stegagno Picchio, definiu "bilíngüe": Geografie d'ombra (Fonèma Edizioni, Venezia), publicado em 1989, seguido de Pedaços/Pezzi (Editora L'Etruria, Arezzo), de 1992, de Tempo de Doer/Tempo di Soffrire (Pellicani Editore, Roma), publicado em 1998, de La guarigione (Edizioni La Fenice, Senigallia), publicado em 2000, de Uccelli convusi (Mani Editore, Lecce), publicado em 2001, de No coração da boca / Nel cuore della parola (Adriatica, Bari), de 2003 e de Verrà l’anno (Fara, Santarcangelo di Romagna, 2005).
Em Geografie d’ombra, de 1989, estão as primeiros textos em italiano, ao lado de outros em português, acompanhados da tradução de minha autoria. Este não é o meu primeiro livro publicado, o qual saiu em São Paulo no mesmo ano em que me fixei na Itália, em 1983: A porta range no fim do corredor. Entre eles não há uma grande ruptura, em termos de temas e mesmo de formas, a não ser o da utilização de um novo sistema lingüístico, que já começa a assomar.
Depois de Geografie d’ombra, publiquei Pedaços/Pezzi, em 1992, cujo título é indicativo de uma adaptação à nova realidade ainda in fieri. Há nele vários textos em que abordo a questão do exílio e da nostalgia, com um senso de incompletude, com um sentimento quase físico de dilaceração. É um livro amargo e desesperançado, e hoje não o publicaria mais, pelo menos não com a mesma estrutura. Os poemas foram todos escritos em português e há resistência em relação à versão em italiano, uma vez que preferi não publicar as traduções de toda a terceira parte do volume, não obstante o fato de que estivessem prontas.
O terceiro livro, Tempo de doer/Tempo di soffrire, publicado em 1998, apesar da temática, ou talvez mesmo por ela, é muito mais equilibrado. Há, nele, uma maior unidade de sentido e de forma. O primeiro núcleo foi escrito em português, mas depois passei de um idioma ao outro, sem perceber essa alternância de línguas como ruptura, como perda de significado, mas utilizando todos os recursos que ambas me propiciavam. Não é um texto simples, mas é um livro de síntese e de harmonia, como não o tinham sido os outros precedentes. Neste, como nos livros anteriores, a temática existencial do sofrimento está muito presente. Aqui, em particular modo, desço nos meandros de uma terrível prática de violência, utilizada nas prisões do Brasil durante a ditadura e ainda hoje em tantos lugares do mundo, a tortura física e psicológica. Posso dizer mesmo que este trauma, vivido indiretamente, marcou-me profundamente.
A este entranhar-se numa temática tão visceral, segue-se La guarigione, publicado em 2000. Foi escrito inteiramente em italiano, embora nele adote o verso setenário, típico da tradição poética da língua portuguesa. Anterior a La guarigione, é o livro Pássaros convulsos, publicado em 2001. Ambos foram vencedores de prêmios nacionais de poesia na Itália, assim como o livro Verrà l’anno, escrito em italiano, em 2003, e recentemente publicado.
O último, No coração da boca / Nel cuore della bocca, publicado no fim de 2003, foi, ao contrário, escrito em português. É composto por uma série de breves poemas em prosa, em que se alternam tantos personagens. Retomo aqui figuras da minha infância e adolescência, vozes que me acompanhavam desde sempre, conservadas na memória.
Como estes livros foram publicados na Itália e tiveram limitada circulação no Brasil, a Editora Escrituras publicou em São Paulo, em 2004, uma antologia que segue esse percurso, A chuva nos ruídos, vencedora ex aequo do prêmio de poesia da Academia de Letras de 2005. O título representa, para mim, uma definição de poesia: chuva vivificante, geradora do logos, palavra criadora sobre os ruídos indistintos e o burburinho cacofônico da incomunicação.
O meu livro mais recente não tem ainda um nome. Começou a ser escrito, em português, a partir de um poema que estava tentando reajustar, sem consegui-lo. Narrava uma experiência marcante vivida na infância e não era a primeira vez que voltava ao texto, sem ficar satisfeita com o resultado. De repente, percebi que a forma não era justa, que aquele conteúdo incandescente não cabia no contenitore que estava usando. Reescrevi o texto, espraiando-o pela página, com uma estrutura que se aproximava da narrativa, mas que era ainda poesia. Era a forma certa, a linguagem que propiciou que uma série de histórias, que estavam dentro de mim, finalmente virassem elóquio, palavra. Encontrara o modo de concretizá-las, e vi que elas só esperavam por isso: num desespero de palavras, de vozes que queriam ser ouvidas, cheguei à página setenta. Estes textos seguem, como estilo, a ruptura que efetuei no livro No coração da boca, mas aqui estão ainda mais narrativos. Colocam-se, come estrutura, entre o conto breve (de menos de uma página) e o poema lírico, com sua síntese e densidade.
Gostaria de concluir, com uma questão que me foi muitas vezes posta: é possível definir-se poeta hoje, assumir tal papel? Por que, e para que, escrever? Por que passar tanto tempo a refletir, a perscrutar dentro de si, a indagar a realidade, a estudar, elaborar e limar um texto? Vai-se depois aos editores com o livro nas mãos, e a resposta que recebemos, no mais das vezes, é que poesia não vende, poesia não dá lucro, poesia não tem público, as pessoas não têm mais tempo para ler. E há sempre alguém que, amigavelmente, nos aconselha a escolher outro tipo de literatura, a propor, quem sabe, um romance ou algo mais divertido. Vem-me em mente uma frase do crítico italiano Walter Pedullà, segundo o qual a linguagem da comicidade é hoje apanágio do entretenimento, é televisiva, não mais metafísica.
Afirma Raymond Carver que toda poesia é um ato de amor e de fé. E acrescenta ainda:

“Esta do poeta é uma atividade que rende tão pouco, tanto financeiramente quanto em termos de fama e de sucesso, que o ato de escrever uma poesia dever ser um ato que encontra a própria justificação em si mesmo e não mira a nenhuma outra finalidade. Para querer realizá-lo, é necessário amar este ato. Neste sentido, então, toda poesia é uma poesia de amor”
[4].

O artista, o poeta, é já em si um exilado, não porque foge da realidade ou vive fora dela, mas porque vê sempre o mundo com olhos de estranhamento, de quem não aceita as coisas simplesmente como estão, de quem se choca contra a banalização do mundo, o comércio da vida. O poeta é um ser desenraizado, banido da realidade utilitária, da economia de mercado, do trabalho mecânico que escraviza, dos relacionamentos que desrespeitam o homem. E como não poderia ser assim? Hoje, mais do que nunca, como afirma Carver, se escreve poesia por amor. Por amor à vida se escreve, como por amor se canta, se pinta, se fala da morte e da dor. Fazer poesia é procurar sobreviver com toda a nossa sensibilidade, a nossa fragilidade. É realizar uma viagem vertical. Não é uma escolha fácil, sobretudo em um tempo em que tudo trama para alienar-nos de nós mesmos, para distanciar-nos do sentido profundo do mundo.

[1] Texto publicado na Revista de Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, 2006.[2] Primo Levi, Opere, volume primo, Einaudi, Torino, 1987, p. XLVI (as traduções presentes no texto são de minha autoria).[3] Antonio Prete, “Trasmigrazione e singolarità”, in Unile 2, Lecce, n°. 2, ano 1, 06/2003, pp. 24-25 (24).[4] Raymond Carter, Niente trucchi da quattro soldi, Roma, Minimum Fax, 2002, p.13.