RODRIGO PETRONIO
mencionado por: Dirceu Villa
menciona a:
(Cito quem ainda não está:)
Maiara Gouveia
Claudio Willer
Floriano Martins
Foed Castro Chamma
Flávia Rocha
poemas
MEDITAÇÃO À MARGEM DO RIO AMARELO
Queimei a pólvora dos meus dias lendo as entrelinhas do capital.
Decidi que o mundo foi feito para acabar em um livro.
Esterilizei a terra e alterei o curso dos rios.
Ergui palácios de papel sobre estruturas e vigas de vidro.
Escureci a noite e tirei os dentes do riso.
Apaguei a memória dos mortos e matei o viço dos vivos.
Carcomi o azul do céu e ceifei as raízes do trigo.
Hoje o meu império vacila e rebenta como um corpo balofo cheio de estrias.
As crianças estão velhas e rugas brotam do amaranto.
Tudo o que toco parece ter dois mil anos.
Talvez seja isso o início do que chamam sabedoria.
A TERRA NÃO ACABA PORQUE A ALMA AFUNDA
A terra não acaba porque a alma afunda.
Recolhe-se ao suspiro das pedras que ordenham a noite.
Vê: a geometria só existe porque o movimento a articula.
A ciência dos mortos dentro de um arbusto
É a mesma do nascimento de flores prematuras.
Os olhos só vêem a verdade que flutua.
O resto é ilusão: falso amor que só preserva o que anula.
O cais deixando o barco, o vôo entre os braços das árvores
Que eclodem em uma lâmpada.
Um deus qualquer que vê além da morte o que a morte não captura.
Sim, amor, a alma só persiste porque a terra se extingue.
Prenhe de leveza antes da chuva, eclipse do corpo em atributos,
Assinatura do dia que se enrola (perfeito)
Na retidão sutil de cada curva que a mão refaz na nuvem
E modela dois diamantes em uma só torção de busto.
Entre a eternidade e o vinco que a unha faz no fruto
Em um beijo revivemos, tu e eu, todo o futuro.
MANHÃ NEGRA, AÇÚCAR, BEBO O ORVALHO DE UM ROSTO
Este açúcar negro que despejo em uma manhã de agosto
É o suor de uma face sulcada pela selva.
Diluo lentamente a sua carne no café que exala
O sangue macio, a menstruação de luz, a primavera,
A pele perfumada, o hálito da boca em brasa,
Sua resina que se granula sob a pálpebra da lua,
No seu fundo se deposita e ainda se conserva.
A arquitetura porosa dos ossos se traduz em um só gosto.
As fibras da língua e a saliva se preparam para a flor
Ceifada do todo e, despicienda, retida entre as mãos, em seu aborto.
Imolo a sua doçura no pavilhão da xícara, e ele,
Prestes a mergulhar em mim e em uma só carícia cega
Povoar-me os sonhos e rechear-me o interior de cada célula.
Dissolvo-o vagarosamente nos giros da moenda.
O aroma se desprende e enche toda a sala:
Mão diáfana com sua linha feita a faca,
Costas estriadas em arabesco como um cesto de vime.
Pausado, levo a emulsão aos lábios e desfruto
A repetição de mais um ritual civilizado
Como quem em plena luz comete um crime.
Este açúcar negro que despejo em uma manhã de agosto
É o suor de uma face sulcada pela selva.
Diluo lentamente a sua carne no café que exala
O sangue macio, a menstruação de luz, a primavera,
A pele perfumada, o hálito da boca em brasa,
Sua resina que se granula sob a pálpebra da lua,
No seu fundo se deposita e ainda se conserva.
A arquitetura porosa dos ossos se traduz em um só gosto.
As fibras da língua e a saliva se preparam para a flor
Ceifada do todo e, despicienda, retida entre as mãos, em seu aborto.
Imolo a sua doçura no pavilhão da xícara, e ele,
Prestes a mergulhar em mim e em uma só carícia cega
Povoar-me os sonhos e rechear-me o interior de cada célula.
Dissolvo-o vagarosamente nos giros da moenda.
O aroma se desprende e enche toda a sala:
Mão diáfana com sua linha feita a faca,
Costas estriadas em arabesco como um cesto de vime.
Pausado, levo a emulsão aos lábios e desfruto
A repetição de mais um ritual civilizado
Como quem em plena luz comete um crime.
DENTRO DA ESTRELA BRANCA
I
O prazer de ser esquecido.
Beber a eternidade com lábios de limbo.
Tocar cada coisa. Pela primeira vez.
Como quem se vê partindo.
Duvidar da morte. Como quem a visse.
Beijar teu rosto. Como se eu não existisse.
II
Bendita seja esta sede.
Esta pétala negra que me coroa.
O espinho de luz desperta a carne.
Na corrente das águas talha minha cara.
Abençoa.
O espírito se rende à navalha.
O monumento de sangue.
O corpo que escoa.
Na outra margem do tempo
Meu coração bate.
Seu pulso se sente.
Mas seu som não soa.
A terra se abre.
Sou-a.
III
Sei das frutas porque os braços me deram.
Sei do fruto que se desfaz no dente.
A primavera recrudesce na papoula.
O orvalho destas mãos: luva transparente.
Retenho teu choro. Teu peito contra mim.
Amo apenas o que passa rente.
Perdendo o prumo retorna ao grão.
A morte que desfaz o que não mente.
Exilado da terra. Céu de ervas.
Deponho minha máscara. Abandono a cena.
Fora do teatro um deus me espera.
IV
Estas mãos têm algo de trágico.
Embora só tenham tocado teu rosto.
Indago da eternidade.
O milagre que banha de luz esse morto.
Nada me responde. Só pegadas.
Palavras que emergem de um cesto.
Feixe de artérias. Voz de outro.
A minha garganta recebe o sol.
Sua luz. A nudez do ouro.
Todo o resto é arte e adorno.
V
O que colho pode vir de uma água mais antiga.
Mais remota que as pedras. Mais mineral que o dia.
Mais tenaz que o céu que sob a terra palpita.
Mais leve que o planeta de argila batida.
O que colho colho com mãos trôpegas.
Indigentes. Sempre as mesmas espigas.
Colho o que não se cultiva.
O instante fugaz. A amora fresca. A cidra.
Colho no ar. Neste campo ilimitado.
Céu sem nuvens. Mar sem praia.
O que ao perder o prumo doura o espaço.
Toda a forma que sob o céu levita.
Estrela ou sargaço.
VI
As duas fases de um mesmo ventre: tempo.
As duas moedas de um mesmo rosto: corpo.
VII
As urzes podem rebentar de minha mão.
Não chorarei. Porque a manhã retém a noite.
E todas as outras formas luminosas.
O lírio desposa o besouro que o renega.
Todo o martírio do mundo vem da entrega.
As rezes se espalham na campina branca.
Pascem seu dorso natural. E seguem.
Só se sofre pelo amor que recusamos.
Nada fica pela metade.
Morrer é lembrar que não amamos.
VIII
Um risco dourado. Um filete de água.
Uma escama verde. A grama de maio.
A constelação que me cinge com seu saibro.
O relâmpago que me entrega sua coroa.
Sou pobre. Nada tenho além da alma.
Esta mão cinza. Este coração de barro.
Esta pele de luz que em vão apalpo.
Oferenda ao sol. A quem me mato.
IX
Se digo que sonho o ruído das flores minto.
Perco-me num labirinto de imagens.
Estou além do que penso e aquém do que sinto.
Todas as asas de um mesmo jogo.
Todos os rostos de um só cenário.
Plumas selvagens que adornam o louco.
Se digo que sorvo este veio. Este abismo.
As flores me tragam em seus orifícios.
Estrelas são patas. Estrias claras da brisa.
O resto são armas. A guerra e o atrito.
A degustação suave da aurora.
E a beleza na qual me aniquilo.
X
O que sobra de tudo talvez seja o início.
Um destino talvez. Um rastro. Uma rota.
Pegadas que levam a um precipício.
Asas que fabrico a cada derrota.
XI
Longe. A amora não me ofereceu sua face.
Apenas o barro com que moldo o milagre.
Se o amor é esse declínio sem fim.
Essa oração à terra que me abre
Toda a engrenagem de suas partes.
Procedo dela. A ele retorno.
Na afirmação do amor me dissolvo.
Além do tato. Além das vozes.
Amor que só se cumpre com minha morte.
XII
Outrora fui esse campo de sono.
Em outro lugar já vivi esse aqui e agora.
Outro era o tempo do mundo em minha garganta.
Canto que dissolve o cantor em suas notas.
Imola-o nas teclas brandas da chuva.
Sorve seu corpo gota a gota em sua obra.
Outro veneno aplaca minha sede.
XIII
Nada mato. Nada retenho. Nada procrio.
Sou o parto azul dos elementos.
A circulação da linfa desses dias.
Depois o poema vem cumprir sua rota.
Colide com o planeta. Abre uma ilha.
Por ora só me encontro em quanto ardo.
Exilado do corpo onde ainda queimo.
Refém da alma de quem fui amado.
Andarilho de um mundo que não adentro.
Flor que ainda persiste em meio a cacos.
Ruído vegetal: eis minhas armas.
Morrer ignorado: maior de todos monumentos.
Estrela que no céu não deixa rastro.
Deus só nasce quando perde o centro.
bio/biblio
Rodrigo Petronio é escritor, professor e pesquisador. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema (AIC), do Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e do Instituto Fernand Braudel. Colabora para diversos veículos da imprensa. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem poemas, contos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de encontros de escritores em instituições brasileiras e em Portugal. É autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal, e organizou com a poeta Rosa Alice Branco o livro Animal Olhar (Escrituras, 2005), primeira antologia do poeta português António Ramos Rosa publicada no Brasil. Publicou o livro de poemas Pedra de Luz, pela editora A Girafa, que foi finalista do Prêmio Jabuti 2006.
poética
A poesia é o grau mais terrível da inocência.
A poesia é o grau mais terrível da inocência.
Meditação à Margem do Rio Amarelo
A Terra não Acaba Porque a Alma Afunda
Manhã Negra, Açúcar, Bebo o Orvalho de um Rosto
Rodrigo Petronio. Pedra de Luz. São Paulo: A Girafa, 2005.
Dentro da Estrela Branca.
Rodrigo Petronio. Venho de um País Selvagem. Inédito.
A Terra não Acaba Porque a Alma Afunda
Manhã Negra, Açúcar, Bebo o Orvalho de um Rosto
Rodrigo Petronio. Pedra de Luz. São Paulo: A Girafa, 2005.
Dentro da Estrela Branca.
Rodrigo Petronio. Venho de um País Selvagem. Inédito.
1 comment:
Rodrigo Petronio.
é maravilhoso descobrir mais um poeta que vai além-nuvens.
Uma metempsicose está presente nas infindas imagens que se faz.
o orvalho é tão indefinido que a estrela, talvez uma estrela em uma explosão, seja atraída por tão fortes reflexos da palavra trabalhada.
simplesmente, sua poesia é ótima.
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