Wednesday, July 25, 2007

VALÉRIO OLIVEIRA





mencionado por:Dirceu Villa

menciona a:
Luiz Roberto Guedes
Sergio Fantini
Renato Rezende
Denis Dias Ferreira
Paulo Scott



poemas

de “Todos os presidentes” (inédito)



Avenida Deodoro da Fonseca


Magnetismo irresistível:
o corpo (o meu corpo, o teu corpo)
sempre atrai muitas bocas.

Estendo a mão e quase sou mordido.
Quase fico sem os dedos, sem a aliança, sem a mão.
Faça o que fizer, não importa, eles mordem.
Diga o que disser,
não importa, eles mordem.

Se você reclama, eles mordem.
Se você sorri, eles mordem.
Se você acelera, eles mordem.
Não importa se o sinal está aberto ou fechado,
ele mordem de qualquer jeito.

Cigarros? Beijos? Moedas?
Não importa se você é egoísta ou generoso,
eles mordem.

Se você é negro, arrancam tua pele.
Se é branco, chupam teus olhos.
Se é amarelo, vermelho, azul,
bebem todo o teu sangue.
As carcaças estão aí, as ossadas
estão todas aí ao longo da avenida.

Não importam as boas intenções,
as más intenções.
Eles sempre mordem.
Eles mordem porque têm boca.

Porque, você sabe,
não adianta ficar ou fugir,
sorrir ou chorar.
Eles mordem de qualquer jeito.
É da sua natureza morder.

Têm boca. Têm bico.

Toda criatura que tem boca
(grande ou pequena, não importa),
toda criatura que tem boca, você sabe.
Venha do céu ou do inferno,
toda criatura que tem dentes
sadios ou podres
morde.

Toda criatura que tem bico
(grande ou pequeno, não importa),
toda criatura que tem bico, é, você sabe.

Magnetismo irresistível: ao longo da avenida,
no trabalho, em casa,
o corpo (o meu corpo, o teu corpo)
sempre atrai muitas bocas.
Muitos bicos.

Periquitos, operários, gatos,
banqueiros, jacarés, presidentes.

É da sua natureza morder.




Praça Floriano Peixoto


Quem escreve poesia corre muitos riscos.
O pior deles é o de ser lido.
As pessoas que lêem poesia são perigosas.

Porém mais perigosas do que as pessoas que lêem poesia
são as pessoas que não lêem poesia
mas conhecem quem lê.
Essas são as que ocupam os cargos públicos
e gostam de homenagear os poetas.
Porque para elas os poetas também são figuras públicas.
Porque para elas a poesia
é a mais cultural das atividades culturais.

Ora, o que se faz às figuras públicas, especialmente
às que se entregam a atividades culturais?
Homenagens!
Mesmo que seja por cima do cadáver do homenageado.

As pessoas que ocupam os cargos públicos
e não lêem poesia adoram
batizar as ruas com o nome dos poetas.
As ruas, as avenidas, as praças, os viadutos.
Também adoram erguer estátuas e monumentos.
Elas adoram homenagear a cultura.
Elas adoram homenagear a poesia.
Como não há outra maneira de homenagear a poesia
a não ser através dos poetas,
elas adoram homenagear os poetas.

Homenagear os poetas é de certa forma a melhor maneira
que as pessoas que não lêem poesia encontram
de homenagear a si mesmas.

Qualquer dia desses talvez elas comecem a ler os poemas.
Tudo é possível neste mundo.
Talvez elas comecem a ler os poemas
e finalmente deixem de homenagear a si mesmas
como prêmio por sua dedicação à cultura.
Isso não acontece todo dia. Mas não é impossível.

Quem escreve poesia corre muitos riscos.
Entre eles o de ser homenageado em cerimônias oficiais.

Os poetas não querem ser conhecidos,
não querem apertar muitas mãos nem ouvir longos discursos.
Não querem virar rua ou praça.
Não querem viver pra sempre num parque,
em permanente estado de estátua.
Os poetas não querem viver pra sempre,
após a morte eles querem ser incinerados.
Acima de tudo os poetas querem que a sua poesia seja conhecida.

Antes e depois da sua morte, antes e depois de virarem cinza
os poetas realmente querem que a sua poesia seja conhecida.
Isso não acontece todo dia, eu sei.
Mas nada é impossível neste mundo.





Agência Prudente de Morais


Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo
a velha crença em milagres.

Nas mãos do segurança do banco
eu deixei as chaves, a bolsa, o coração e os ossos,
deixei tudo o que levava nos bolsos e no corpo
porque o alarme não parava de soar.

Nas mãos do segurança eu deixei
os brincos e os anéis, o pâncreas e os pulmões,
deixei tudo o que eu tinha e até o que nem sabia que tinha:
o câncer no útero, o medo de lugares abertos,
a vontade de aprender a dançar.

O alarme não parava de soar, simplesmente
não parava, a porta-giratória travou
e eu não tive coragem de olhar pra trás,
pra fila aflita que me vigiava.

Deixei tudo, os sapatos, a roupa,
as unhas, o estômago e todas as lembranças.
Nas mãos do segurança do banco
eu deixei as viagens que planejava fazer,
os namorados, os filhos que ainda não tive.

A porta giratória travou entre a vida de lá e a de cá
e eu tive muito medo de ficar presa
nesse intervalo econômico.
Então eu entreguei tudo, até mesmo o outono,
o sorriso e os meus melhores aniversários.

Deixei tudo lá. Deixei tudo, até mesmo
os dezesseis mil beijos que você me deu,
os ardentes e os protocolares.

Sem mais nada para incomodar o alarme,
eu decidi ir embora.
Fui até o carro e vi que não tinha mais carro.
Voltei para casa e vi que não tinha mais casa.
Eu não tinha mais nada, eu não tinha nome, eu não tinha eu.

A verdadeira força, a sublime missão
dos alarmes, dos seguranças e dos bancos é essa:
libertar a humanidade dos pesos e das medidas indóceis.

Faltam dois dias para o ano-novo,
a cidade continua viva
e eu sei, ah, mesmo sem as antigas crenças
eu sei que no vaivém das portas giratórias
enquanto houver finanças e seguranças
fenômenos mais espantosos estão para acontecer.




Valério Oliveira nasceu no Rio de Janeiro, em 1958. Poeta e vagabundo globalizado, já morou em Los Angeles, Buenos Aires, Madri, Milão, Lisboa e no Porto. Gosta de felinos, de Modigliani e de Itamar Assumpção. Atualmente mora em São Paulo e ganha a vida como garçom num restaurante de comida italiana. Tem quatro livros publicados, todos de maneira artesanal: Mínimo eu (2002), Oh! (2003), Sobras do subsolo (2004) e Teto no piso (2005).










poética:
Poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de
despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético. Essa definição de poesia me permite buscar a referida qualidade em todas as artes. Me permite falar da poesia que há nos bons poemas, nos bons contos, na boa arquitetura, no bom cinema, no bom teatro, na boa escultura…

7 comments:

Lucas Nicolato said...

muito delicado o "agência prudente de moraes". belo e verdadeiro.

Sérgio Alcides said...

Valério,
tirou a barba, hein?
Parabéns pelos poemas!
Abraços,

Sérgio Alcides.
http://quemmandou.blogspot.com/

Anonymous said...

Abaixo a censura.
Um amigo

Aníbal Cristobo said...

O comentário "Abaixo a censura", assinado "um amigo", refere-se a um post anterior que decidi nao publicar. Esse post era também anónimo e tb assinado por "um amigo", porém muito mais agressivo. Neste blog nao há censura, enquanto as pessoas que colocam as opinioes tenham a valentia de faze-lo assinando com seus nomes, e nao como "anónimos".

ac/

Anonymous said...

Anibal, certo sua escolha.
é melhor evitar discussões sem seus devidos comentadores.

Agora,
Valério Oliveira
Lembro agora de um livro de Fausto Wolff - o equilibrista pede desculpas e cai. Sua poesia é questionadora, mas não flui em verborragias. Parabens por saber dosar/levar nas mãos palavras que saem dos trilhos.
evoé

Lucas Nicolato said...

Aníbal,

A constituição federal brasileira garante a liberdade de expressão, sendo vedado o anonimato. Trantando-se de um espaço privado, você não teria a menor obrigação de publicar todos os comentários que por acaso surjam, mas sua atitude em publicá-los desde que estejam assinados é coerente e louvável. Este é um canal bastante interessante para conhecer poetas e trocar impressões sobre seus trabalhos, não deixemos que ofensas aleatórias o prejudiquem.

um abraço,
Lucas

puxando conversa....... said...

Espero que todos possam, pelo menos, ser capazes de "passar o olho" no seu "manifesto".... acho que não poderão deixar de ler poesia nunca mais depois dessa experiência.

Bj.
Neucilene