Tuesday, September 12, 2006

DONIZETE GALVÃO





menciona a:Ruy Proença
Paulo Ferraz
Tarso de Melo
Vera Lúcia de Oliveira
André Luiz Pinto



poemas:


Aquém do homem

Para Maria Rita Kehl

Os corpos já nascem
em débito.
A dívida consolida-se
como uma craca
que adere à pele,
contamina o sangue,
sem que haja lugar
para o desejo.
Quando este surge,
irrompe
como uma facada
na jugular
em um beco escuro.






Saturação




No círculo que a xícara de café
deixa desenhado no pires,
o grão amargo do equívoco.
O olhar preso, a vida presa.
Ânsia que confrange os ossos.
Ninguém atura o risco do cerco.
Ninguém sai dele de mãos vazias.






A preparação do próximo dia

Para Marcelo Diniz


O próximo dia,
ainda que não esteja pronto,
já lateja nas têmporas
depois do vinho de domingo.
Sua saturação de ruídos
antecipa-se naquelas vozes
que vazam das tvs dos vizinhos.
Mesmo que seu nódulo
de sólida amargura
ainda não esteja concluído,
o ganir dos cães na noite
anuncia suas dilatações.
Prova que, embora indesejada,
a segunda-feira virá
cegar-nos como havia prometido.





bio/biblio

Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, em 1955. Reside em São Paulo desde 1979. Publicou os seguintes livros:
Azul navalha – 1988 – T. A. Queiroz, Editor – Prêmio APCA de Revelação
de autor e indicado para o prêmio Jabuti.
As faces do rio – 1991 – Água Viva Edições.
Do silêncio da pedra = 1996 – Arte Pau-Brasil Editora.
A carne e o tempo – 1997 - Nankin Editorial – indicado para o prêmio Jabuti.
Ruminações – 2000 – Nankin Editorial.
Pelo corpo – 2002 – Alpharrabio Editores – em parceria com Ronald Polito.
Mundo mudo – 2003 – Nankin Editorial – indicado ao prêmio Portugal Telecom.


Participação em antologias:
Veia Poética – Vertente – 1981.
Antologia da Nova Poesia Brasileira – Hipocampo/Rioarte – 1992
Anthologie de la poésie bresilliene – Chandeigne – 1998
Na virada do século – Poesia de Invenção no Brasil – Landy Editora – 2002
Antologia da Poesia Brasileira do Século XXI – Publifolha – 2006

Jornais e revistas: Suplemento Literário de Minas Gerais, Folha de S. Paulo, O Globo, Gazeta de Curitiba, A Tarde, Anto, Babel, Cacto, Coyote, Cult, Blanco Móvil, Rattapallax, tsé-tsé, Inimigo Rumor, Sebastião, Poesia Sempre, Anterem, Crocevia, entre outras.





poética

Depoimento de Donizete Galvão


Os poetas, desde Sócrates, vêm tomando puxão de orelhas de filósofos e críticos pela precariedade com que explicam sua poesia. “Dizem coisas bonitas, mas não compreendem nada do que dizem”. Tentar explicar os poemas e sua concepção poética torna-se muito difícil. Parece-me que a necessidade de uma explicação do poeta revela também a dificuldade de lidar com um tipo de saber que lhe é dado, revelado numa fulguração. Que não tem a nitidez do pensamento filosófico e foge ao seu controle porque não sabe quando se repetirá.

O que posso dizer sobre minha poesia, pedindo socorro à María Zambrano, é que para mim trata-se um jogo de iluminação e sombra. Desejo estar receptivo à sua intensa luz. É o momento em que me sinto mais religado ao mundo. Quando este clarão se esvai, não deixa apenas o vazio. Deixa também o seu contrário: a escuridão. Um paradoxo: a luz o tempo todo seria insuportável. Se ela se afasta por longo tempo, sinto-me em um deserto. Acredito em “inspiração” e também no trabalho de escrever e reescrever.

Quase sempre, o trabalho posterior consiste em retirar e cortar. Não me lembro de ter ampliado poemas. Há uma fase que eles ficam, depois de prontos, “chocando” ou decantando. Tenho buscado a música natural da língua e da fala. Por isso, evito recursos musicais, sintaxe retorcida, trocadilhos e divisões arbitrárias dos versos. Não recuso as rimas, também não procuro por elas. Eu não gosto de poesia perfumada, carregadas de enfeites ou que tenda ao tom profético.

Eu continuo cada vez mais fascinado pela língua portuguesa. Não pela correção gramatical. Mas pelos arcaísmos que encontro na minha região, sul de Minas, ou pelas palavras que ouvi na infância, pela riqueza vocabular. Não gosto palavras ocas. Outro dia conversando com meu sogro sobre carrear e carro de bois, fiquei pensando como cada palavra tem um significado preciso designando um objeto ou uma técnica que apresenta sua razão e utilidade. É a palavra dita na concretude da labuta. A língua está contaminada por uma palavrear falso e mentiroso. Minha nutrição como poeta vem do glossário familiar, dos dicionários, dos livros de história e geografia, sobre árvores, plantas, pássaros e pedras.



Sigo uma estradinha de atalho já que sou dos poucos poetas que têm um imaginário fincado na terra, na pequena cidade, na vida interiorana e no choque com a vida na cidade. A relação com Minas e com São Paulo é sempre tensa, cheia de atritos. Não idealizo a infância. Minha relação com o mundo sempre foi de inadequação. Durante anos, andei com uns versos de Edgar Allan Poe na carteira até que o papel se esfarelou. E sempre lembro do final do poema: “tudo que amei, amei sozinho”.

Não consigo ter uma idéia clara sobre os rumos de minha poesia. Sei que ela está cada vez mais ligada às coisas, à paisagem, às misérias do quotidiano..Vou colhendo restolhos, restos, fragmentos. Prefiro temas antipoéticos como o berne, o esterco, a argila. Há um momento em que o poeta deve fazer escolhas e seguir sua voz interior.

Lembro Paul Celan sussurrando “ó quanto mundo, quanto caminho”. Acho que vivo o impasse de não conseguir transformar em poesia toda esse drama social que vivemos. É um mundo muito vasto para meu breve fôlego de poeta. Duvido de tudo. Até mesmo do papel da poesia ou da arte nesse mundo em que tudo virou mercadoria. Em outros momentos, mais raros, as palavras me procuram e eu sou servidor delas. No meu próximo livro, que não sei se realmente irá existir, eu faço uma citação de Simone Weil. “Você não poderia ter nascido numa época melhor do que esta, em que tudo se perdeu”.



6 comments:

Anonymous said...

Doni, gostei dos poemas e me vi naquele saturação, esparando a segunda atacar na jugular, com a ressaca de sempre. abs, Heitor

Anonymous said...

meu jovem, legal você ter entrado no site. abração andré

Anonymous said...

Doni, parabéns, legal você ter entrado no site. abração andré

Anonymous said...

Adorei "a preparação para o próximo dia". muito bom mesmo!! parabéns!

Anonymous said...

Já decorei o "Aquém do Homem" e vou atrás dos seus livros, começo pelo Mundo Mudo?
A Flautista

Anonymous said...

Concordo com sua poética, na maior parte, sobretudo quando v. diz crer na inspiração e no trabalho de reescrever. Muita gente terá se perdido ao negar uma dessas coisas. Vamos criar um movimento em favor de uma poesia que seja inspiração e trabalho? Também achei poucos indícios de parataxe em seus poemas. Qual a razão?