Monday, September 04, 2006

PAULO HENRIQUES BRITTO


menciona a:
Marcello Sorrentino
Vivien Kogut
Mariano Marovatto
Antonio Cícero
Eucanaã Ferraz



poemas:


ESPIRAL
A noite é um morcego manso
sobrevoando uma cidade quase adormecida,
tomando cada rua, cada casa,

como um cheiro adocicado de fruta
quase apodrecida que penetrasse uma casa,
ganhasse cada quarto, cada sala,

como cheiro morno de coisa morta
ainda há pouco se espalhando
por uma cidade quase entorpecida,

como uma noite que descesse sobre casas
mortas, como uma peste,
como se nunca houvesse havido dia.

A noite é um morcego morto.

(Liturgia da matéria, 1982)



MINIMA POETICA – IV

Dizer não tudo, que isso não se faz,
nem nada, o que seria impossível;
dizer apenas tudo que é demais
pra se calar e menos que indizível.
Dizer apenas o que não dizer
seria uma espécie de mentira:
falar, não por falar, mas pra viver,
falar (ou escrever) como quem respira.
Dizer apenas o que não repita
a textura do mundo esvaziado:
escrever, sim, mas escrever com tinta;
pintar, mas não como aquele que pinta
de branco o muro que já foi caiado;
escrever, sim, mas como quem grafita.

(Mínima lírica, 1989)



SETE ESTUDOS PARA A MÃO ESQUERDA – II

Tento dizer: a tarde tem o tom
exato de outra tarde que conheço,
mas qual? (Mas neste instante escuto o som

de uma outra voz, que é minha e desconheço,
e o que ela diz é belo, é certo e é bom.
Mas o que digo assim não reconheço.

É como um deus de bolso, esta presença
que o próprio gesto de negar evoca.
A voz é dela, embora me pertença
a música. E mais a mão que a toca.)

Naturalmente, enquanto isso a tarde
se apaga, anêmica, despercebida,
e vem a noite, com seu negro alarde.
Desde o começo a causa era perdida.

(Trovar claro, 1997)


VÉSPERA
No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.

A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar — insetos?
O abacaxi impera na fruteira,

recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.

A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.

(Macau, 2003)



bio/biblio

Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Publicou quatro livros de poesia — Liturgia da matéria (Civilização Brasileira, 1982), Mínima lírica (Duas Cidades, 1989), Trovar claro (Companhia das Letras, 1997), Macau (Companhia das Letras, 2003) — e um de contos, Paraísos artificiais (Companhia das Letras, 2004). Organizou e traduziu antologias poéticas de Wallace Stevens (Companhia das Letras, 1987) e Elizabeth Bishop (Companhia das Letras, 2001). Entre suas traduções de prosa mais recentes destacam-se Mason & Dixon de Thomas Pynchon (Companhia das Letras, 2004) e O som e a fúria de William Faulkner (Cosac & Naify, 2004).



POÉTICA
Escravo da sintaxe e do desejo,
não posso ambicionar o brilho raso
e a transparência vazia que vejo
nesses cristais gerados pelo acaso.
Palavra é coisa feita, construída
de uma matéria turva e densa, impura
como tudo que tem a ver com vida.
A pedra só é bela, embora dura,
se meu desejo em torno dela tece
uma carne de sentido, e acredita
que desse modo abranda e amolece
o que só por ser áspero me excita.
Nesse momento o cristal é completo,
e o poema — este, sim — concreto.

(Mínima lírica, 1989)

6 comments:

Anonymous said...

BRILHANTE!

Anonymous said...

Tô louca prum inédito seu.
A flautista

Anonymous said...

"Diz-se-ia que os universos mitológicos são destinados a ser pulverizados mal acabam de se formar, para que novos universos nasçam de seus fragmentos" (Franz Boas).

Sua poesia Paulo é brilhante.
Imberbe que sou, ainda chegarei a sua capacidade de transmissao de catarse.rsrsrsrs
evoé

Anonymous said...

Quando em 1982 eu estava ativo com a poesia, vivendo ainda no Rio, me maravilhei com a tua poesia. Tenho comigo o exemplar de Mínima Lírica, que reli muitas vezes. Agora, a distancia, em outro país, me reencontro com os teus versos. Parabéns. Com certeza essa iniciativa poderá me aproximar de outros momentos da vida que ficou, num bar do Jardim Botanico ou noutro de Ipanema, noutro tempo que escolheu me ver passar.

Anonymous said...

olá, paulo, meu nome é jessé e gostaria de dizer que o poema poética mínima, além de ser um belo exercício metalingüístico, é fundamentalmente uma das mais etéreas definições do que é ser um poeta: o alquimista da palavra ácida capaz de transformar o chumbo da vida cotidiana em rosas de ouro.
ah, se me permite a ousadia, gostaria de o convidar a participar do portal luso-poemas, tenho certeza de que seria um grande privilégio para o site tê-lo como colaborador.(www.luso-poemas.net)

Paulo Henrique Motta said...

Paulo, ler suas bem traçadas linhas cada vez me inspiram mais.
Um grande abraço do seu eterno aluno e admirador,
Paulo Henrique Motta